Naquela manhã chuvosa de primavera, Anadri acordou decidida. Não mais choraria por ele. Jerry seria passado. Colocaria um ponto final naquele capítulo de sua história que a vida, caprichosamente, teimava em deixar longo demais. 
No silêncio do quarto, olhos fitos no vazio, deixou vagar as lembranças. Lembrara-se do que havia lido anos atrás, quando em desespero, procurara ajuda no Google digitando a frase: "Como esquecer um grande amor". 
Entre as futilidades que lera uma chamara-lhe a atenção: "Foca no maior defeito dele ou no que ele tem de mais feio".   Naquele dia, rapidamente lhe vieram à lembrança todos os defeitos de Jerry e tudo aquilo que ele fazia e que a aborrecia. Estranhamente isso a ajudara. 
Lembrou-se do dia em que havia decidido colocar no baú do esquecimento e da indiferença, presentes, objetos e toda a admiração que um dia tivera por ele e que a fizera apaixonar-se. 
Desde então havia se passado três primaveras, mas a mágoa, alterando o relógio das estações, não lhe deixara viver a beleza dos outonos, o aconchego dos invernos e as delícias dos verões dos tempos idos. Entretanto, nesse baú não conseguira colocar as mágoas e os rancores. 
Envolveu-se nos lençóis, virou-se para o lado, fechou os olhos e tentou afastar as lembranças. Precisava fixar-se na decisão de deixar Jerry no passado. 
No entanto, a chuva tamborilando na vidraça da janela trouxe-lhe a nostalgia de outros sons, assim como as memórias de um baú coberto com as crostas da poeira do ressentimento.

 
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Recordava naquele momento do dia em que havia decidido livrar-se das lembranças que a machucavam, colocando-as numa caixa enviadas a Jerry: Depois de uma noite mal dormida, levantou-se de um salto da cama e fora para o seu banho quente. No chuveiro, enquanto a água corria-lhe quente pelo corpo, pensava em Jerry e no modo como ele insistia em dizer-lhe que um dia haveria de lhe tirar a mania de banho muito quente. 
Demorou-se então, teimosamente, no banho, deixando a água ainda mais quente abafando as lembranças e as recomendações do ex-amado. Ao sair do banho, enrolou-se numa toalha azul pendurada à sua espera e, imediatamente, lembrou-se que aquela toalha havia sido presente de Jerry numa ida de ambos ao supermercado, logo após a emoção do primeiro beijo.
Tentando afastar as lembranças, vestiu-se rapidamente e, quando se deu conta, havia colocado a blusa preta e os brincos de pérola que ele lhe dera de presente numa tarde de sábado.
"Ah! As tardes de sábado!" Suspirara, profundamente enquanto, naquele dia, as lembranças continuaram desfilando vivas por toda a casa. 
Entrou no quarto e viu o elefantinho de pelúcia sobre a cama. Pareceu-lhe ouvi-lo cantar os versos da canção, "Detalhes", de Roberto Carlos: “Não adianta nem tentar me esquecer, durante muito tempo em sua vida eu vou viver”.   Aquele elefantinho de pelúcia também fora presente de Jerry e presença constante em sua vida. Com ele dormia abraçada todas as noites. Foi então ali, naquele momento, que percebeu estar cercada de lembranças das quais deveria se desfazer se quisesse mesmo se concentrar no pior defeito de Jerry e esquecê-lo. 
E assim o fez. Reuniu todos os presentes que recebera dele: CDs, roupas, calçados, lingeries e joias. Colocou-os numa caixa e devolveu-lhe com um bilhete: "Para que o passado não siga presente". 
Deletou todos os e-mails, papos em aplicativos, perfis em redes sociais, assim como o Diário escrito a quatro mãos no qual registravam dia a dia a história de amor que viviam. 
Afastou-se de tudo que a fazia estar às voltas rememorando aquele amor que ele, sozinho e egoistamente, resolvera colocar fim. Sabia, porém, que as memórias impressas na alma e no coração eram indestrutíveis e que continuariam vivas para sempre.
 
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De repente abriu os olhos, fitou o teto, e como num filme, as lembranças desfilavam uma a uma, em câmera lenta, vagarosamente. Deixou-se recordar mais uma vez de Jerry e como vinha trabalhando a escuridão das lembranças para que a luz surgisse e repreendesse toda a dor que ainda sentia.   Conhecera Jerry ainda criança. Tinha apenas doze anos quando se descobriu apaixonada por ele. Uma paixão intensa desde o início, avassaladora e inesquecível. Aquele fora o primeiro amor. Separados na adolescência, Jerry nunca soube do amor que Anadri nutria por ele até reencontrá-lo numa tarde de primavera de 2012, vinte anos depois. 
No reencontro uma viagem marcaria suas vidas para sempre. O amor que sentia por Jerry reacendera forte como nunca e desde então viveram dois anos do mais intenso e puro amor. Um amor verdadeiro, cheio de muita paixão, ternura, entrega, cumplicidade e sintonia.  Sintonia de corpos, de pele, de pensamentos, de paixão pelas mesmas músicas, mesmos filmes e pelos mesmos lugares. 
Mesmo morando distantes um do outro, quase sempre estavam juntos nas tardes de sábado. Tardes que ficaram tatuadas no coração e na memória de ambos para sempre, tal a cumplicidade e beleza do verbo "sabadear" que aprenderam a conjugar e a viver, cada vez mais intensamente, como se fosse sempre o último. 
Inúmeras foram as viagens que fizeram nos fins de semana e incontáveis as lembranças e histórias de cada cantinho que os acolheu. Infindáveis as memórias, os segredos, as juras e as promessas. 
Por um instante, no tamborilar da chuva na janela, acreditou ter ouvido a voz apaixonada de Jerry: 
– Promete que nunca vai me deixar? Por favor, não me deixe! – dizia-lhe sempre, apaixonado. – Você é minha última chance de ser feliz. Jamais haverei de me interessar por outra pessoa. 
E uma lágrima correu dos seus olhos. Prometera a Jerry, inúmeras vezes, que nunca o deixaria e, no entanto, ele a havia deixado. 
Deu um longo suspiro e novamente reviveu o triste instante do adeus: Naquele domingo, também na primavera, ele a levara para almoçar. Felizes foram depois para o apartamento de Jerry onde passariam juntos o domingo e o feriado de segunda feira. 
Mesmo cansada e sob forte pressão, ela estava muito feliz. Havia movido céus e terra para estar com Jerry naquele fim de semana. 
Naquela noite, com a cabeça recostada em seu peito, ela o notara distante. Havia dito que precisavam conversar. 
E conversaram. 
O homem que ela amava e que lhe havia jurado amor eterno colocava fim no relacionamento de dois anos, de intenso amor e paixão. 
Entendendo ser aquilo a coisa mais normal e tranquila do mundo, disse a ela, enquanto acariciava-lhe os cabelos, que havia outra pessoa. Havia encontrado um antigo amor de infância. E desferindo o último golpe de uma cruel punhalada acrescentou: 
– Foi bom enquanto durou. Preciso pensar na minha velhice e arrumar uma pessoa que fique ao meu lado e cuide de mim pelos anos que ainda me restam.
Tomada de surpresa e sem entender o que estava acontecendo, Anadri ficara sem chão naquele instante. Jamais havia imaginado que aquele grande amor terminaria daquele modo. Sabia que um dia terminaria, pois acreditava que nada era para sempre. No entanto, sempre acreditara que aquela decisão seria de comum acordo e nunca deixariam de ser amigos. 
Foram tantas promessas, tantas confissões, tantos sonhos, tantos segredos compartilhados, tanta sintonia! 
Ao ouvi-lo sentiu que o chão se fora dos seus pés. Levantou-se de sobressalto e pôs-se a vestir, desejando desesperadamente sair daquele lugar, daquele quarto e daquela cama que há minutos havia sido testemunha de um amor imenso. 
Não conseguia acreditar que aquilo fosse verdade. Acreditou estar sonhando. O homem, que tanto pedia-lhe para que nunca o abandonasse, estava ali confessando amor por outra pessoa. 
Soubera dias depois que Jerry terminara assim o relacionamento por imposição de seu novo amor, com quem já estava se relacionando há tempos e a quem disse logo após o término: "Agora somos apenas nós dois".

– Por que ele a levara para seu apartamento, fizera compras no supermercado para passarem aqueles dias juntos e agora a dispensava assim de sua vida? Por qual razão a estaria humilhando daquela maneira? Se tinha a intenção de colocar fim no relacionamento naquela noite, por que não o fez de uma maneira mais digna, mais humana? Por que estava se comportando como um moleque? 
Aquelas foram interrogações que Anadri fizera a si mesma, sem nunca saber as respostas. 
Perplexa e completamente arrasada, pegou suas coisas, abriu a porta e saiu. Saiu para nunca mais voltar. Saiu em prantos sem olhar para trás. Deixou ali naquele quarto um amor que havia sido único, deixou planos e sonhos.  Amara aquele homem como jamais havia amado alguém antes. Amara-o até onde uma mulher pode amar alguém.  Amara-o desde criança. 
O que mais doía e dilacerava-lhe o coração naquele instante, enquanto as lágrimas caíam, era a traição, a ingratidão. Sentia-se humilhada, traída e descartada. Sentia-se uma peça de roupa velha e surrada que se joga em um canto qualquer quando não se precisa mais. 
Juntando seu coração em pedaços, espalhados pelo chão, entrou num ônibus e foi embora. As lágrimas foram sua companhia naqueles 150 km percorridos na volta pra casa.   Naquela noite, rolando na cama e com as lágrimas teimando em cair, não conseguiu dormir. Tudo voltava à sua mente e vivia aquele momento da separação repetidas vezes, não conseguindo se libertar daquela cena. 
O dia amanheceu e Anadri não encontrou ânimo e nem motivos para levantar-se da cama. Permaneceu imóvel com os olhos fitos no teto do quarto em estado de profunda letargia. Era o início de uma depressão e do fundo do poço no qual se sentira jogada. Não conseguia se alimentar, nem dormir e nem trabalhar. 
Logo perdeu peso e adoecera. 
Os dias que se seguiram depois daquele domingo foram os mais tristes e desesperadores que havia vivido. Nunca conseguira transmitir em palavras as reais sensações, emoções e sentimentos vividos depois daquela noite quando foi brutalmente apunhalada. 
Era assim que se sentia: apunhalada pelas costas com uma navalha fina e cortante que fazia sangrar incessantemente enquanto dilacerava-lhe a carne. 
Aquela era uma ferida aberta por alguém que, nos dias que se seguiram, só fez aumentar. Cada atitude de Jerry, cada fato novo, cada vez que a procurava tentando se justificar do que havia feito, era uma decepção a mais e um dedo na ferida que foi se tornando de proporções gigantescas; sem cura e sem volta. 
O que mais doía e a magoava era saber-se substituída, trocada por outra pessoa e não encontrar uma resposta ao que teria feito e onde teria errado. 
Anadri percebeu que toda a sua vida e tudo que tinha até então, havia colocado nas mãos de uma única pessoa. Percebera que estava sem alicerce, sem o único amigo que tinha, sem o confidente, o namorado, o suporte e o conselheiro. 
Não tinha nada. Não tinha alegria, não tinha coragem, não tinha fome, não tinha ânimo. 
Sentia sua vida definhar-se. Sentia uma falta enorme do bom dia pela manhã, do boa noite, do como foi seu dia, do toque do celular, da caixa cheia de e-mails e de tudo que preenchia seus dias e que naquele momento sabia, eram endereçados a outra mulher. 
Havia um vazio imenso de tudo. Um ensurdecedor silêncio que a enlouquecia. 
A partir de então, passava os dias sozinha no imenso apartamento sem ninguém com quem conversar. Chorava desejando que o telefone tocasse para falar com alguém. Podia ser um cobrador, podia ser engano; não teria problema, mas precisava conversar com alguém. Precisava ouvir o som da própria voz e sentir que estava viva, que podia ser útil prestando alguma informação que fosse. 
Enfim, a coisa que mais desejava e que mais lhe fazia falta naquele instante era um abraço. Um abraço de quem realmente com ela se importasse. Podia ser de qualquer pessoa, qualquer cãozinho, qualquer um que tivesse o calor para lhe aquecer e diminuir o frio da dor. 
Sentada no chão, no solitário apartamento, chorava se abraçando com os braços envoltos ao próprio corpo. 
A dor de Anadri era imensa, insuportável. Era dor de alma, era o coração que sangrava. Doía-lhe a carne e os ossos tal a intensidade do mal que lhe assolava. Doía-lhe fisicamente. A sensação de abandono e de não valia era indescritível. Havia perdido o amor próprio, a alegria e a motivação para viver. Via-se sem objetivos, sem rumo e sem perspectivas. 
E no limite da dor desejou não mais viver. 
Enquanto os dias se passaram, Anadri ansiava e esperava por dias, semanas, meses e anos, por um pedido de perdão. Ansiava pela mão estendida de Jerry tentando reparar a dor e a mágoa que lhe causara. Seu coração machucado e carente se rebaixava, inconscientemente e silenciosamente, suplicando por sua atenção e carinho. 
No entanto, esse pedido de perdão e esse carinho nunca vieram, mesmo Jerry tendo conhecimento de seu sofrimento e do seu estado quase mórbido de viver. 

E naquele momento, ali no vazio de seu quarto, naquela manhã chuvosa de mais uma primavera, Anadri revivia toda a sua dor. Alguns anos haviam se passado, mas ainda doía. O ferimento não se fechara de todo. A cicatriz desafiava o tempo no seu processo de cura. 
Não existia mais amor, não existia mais paixão. Somente as lembranças e a mágoa teimavam em permanecerem presentes. Por Jerry restara apenas a indiferença. E esta, a indiferença, havia matado há muito o jardim construído pelos dois amantes. 
No entanto, no limite da dor, explorando a escuridão das lembranças, estava descobrindo o poder infinito da luz que existia dentro de si. E uma nova primavera despontava naquela manhã e com ela a beleza e o perfume de novas flores num novo jardim. 
Com certeza a partir dali viveria a beleza das outras estações. 
Levantou-se decidida. Não mais choraria por ele. 
Jerry a partir de então seria passado. 
Havia ultrapassado o limite da dor e estava colocando um ponto final naquele capítulo de sua história. Um capítulo que a vida, caprichosamente, teimara em deixar longo demais.

Suzana França
Dezembro/2014


O texto faz parte do Livro, Contos e Crônicas, Suzana França e outros autores, edição 2018, da Editora Palavra é Arte.
Suzana França
Enviado por Suzana França em 29/07/2018
Código do texto: T6403789
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