EVERYDAY IS LIKE SUNDAY
Há muitos anos li um livro chamado O Hagakure, de Yukio Mishima, sobre um sábio japonês e o código de honra samurai. Livro marcante, mas uma passagem em especial me marcou, "para se alcançar grandeza é preciso antes ter dominado as pequenas coisas". Essa foi a maior verdade com que já me deparei, são os detalhes que de fato contam, pois, além de tijolos de uma edificação, são elementos de sedução, dificilmente amamos pelo geral, não somos muito aptos para lidar com abrangências, amamos pelos detalhes; as pequenas coisas são muito mais importantes do que as grandes, é a caminhada quem faz a chegada.Dentre as coisas nas quais detalhes são o que contam está o amor de pai para filho e mesmo o amor em geral.
Numa manhã de primavera de 1988 meu irmão caçula convenceu-me a ir vê-lo jogar por um time que não era nem filiado à Liga Joseense de Futebol, o time do Vilaça. Na verdade, time da "Linha Velha", antiga favela, cujo nome derivava da época em que margeou uma linha de trem desativada, creio que no início do século. Também margeava a extinta ladeira de Dom Bosco, cujo topo continha uma capela de taipa homônima à ladeira, capela demolida tal qual meu catolicismo, morta como o padre que me batizou.
A Linha Velha gozava de péssima reputação e o nome soava pejorativo, sinônimo do que havia de mais reles na cidade, tanto que, em dado momento, o pedaço próximo à capela incorporou-se à favela Santa Cruz.
Pareceu emenda pior do que soneto, mas isso é comigo,não sou um deles para discernir as vantagens dessa fusão, a única coisa que depreendo é a de que não conviviam muito bem com a própria realidade, tanto que o nome do time era o de uma rua central de São José dos Campos, rua que desembocava feito rio na Linha Velha ( como se desembocasse num mangue). Todos ali declaravam-se moradores dessa rua.
Era domingo, sentia-me cansado, faculdade e trabalho como técnico químico em laboratório,meio grogue de sono, mas considerei ofensivo recusar o convite do irmão. Fomos a pé até o campo do Oratório, time da primeira divisão do amador da cidade e disposto a realizar jogos treinos antes do início da temporada oficial. Para os favelados foi uma honra sem igual jogar em um campo oficial e na zona nobre da cidade e ainda com dois quadros em campo.
Chegamos com o jogo do segundo quadro em andamento, zero a zero. Quase ninguém reparava nesse jogo, exceto os envolvidos e um senhor franzino, calvo, grisalho, chinelo vão de dedos, calça remendada, camisa puída e sem dentes frontais. Torcia visivelmente ansioso. No fim do jogo, horrível,sobrou uma bola de rebote numa dividida assassina bem no centro da meia lua e um rapaz loiro acertou um chute de bico, gol. O rapaz era filho daquele senhor. O pai não conseguiu nem comemorar porque chorou. Apontei-o para meu irmão , que riu do absurdo de chorar emocionado num jogo daqueles. Disse-lhe, "não ria!".
Soube depois que o autor do gol, um médio volante apenas esforçado, era o único de 5 filhos que restara ao pai. Um foi assassinado pelo tráfico, outro morreu em um tiroteio com a polícia, outro morreu de leptospirose e a única filha suicidou-se. O senhor Sebastião chorou de emoção por ao menos um filho destacar-se em algo decente e bom e por perceber que isso demonstrava que fora bom pai, ao menos com aquele. Chorou também porque amava o filho e desejava seu sucesso, já que nisso não dera-lhe exemplo. O gol era uma alento, um dia veria seu menino pelo Corinthians no Pacaembu.
Terminado o jogo, o senhor Sebastião retirou-se com uns amigos felizes da vida, mas no retorno para os barracos resolveram tomar umas pingas num boteco para comemorar e voltaram trançando as pernas para casa. O pobre senhor deitou-se e durante o sono teve um ataque cardíaco, morreu com a esperança renovada de que seu garoto seria alguma coisa na vida, pelo menos esse.
Ele não falhou na educação dos filhos. O mundo é muito injusto com os pais, se o filho vence o mérito é todo dele, não do pai, o qual só é lembrado nos fracassos. Não é só o pai quem educa, todos o fazem: Parentes, religiosos, vizinhos, escolas, forças armadas, TV, local de trabalho. A sociedade deveria refletir sobre o que faz por essas pessoas, que apoio oferecem, que estrutura lhes dá... o senhor Sebastião fez o que pode, foi homem honesto, deu exemplo e quatro dos filhos não seguiram-no.
A contragosto torci pelo meu irmão, relutei em ir porque sou palmeirense e tinha antipatia pelo Corinthians, time dele, e por Viola, jogador que ele imitava. Perderam de 4a2, meu irmão fez os dois gols de honra.
O Vilaça jamais filiou-se à Liga por falta de recursos. Meu irmão foi jogar pelo São Benedito já naquela temporada e ficaram em terceiro lugar no certame, do qual foi artilheiro. Ganhei dele uma camisa em farrapos daquele time pobre. Como morria de antipatia por Química Analítica, apresentei um seminário trajando aquilo, no curso de Farmácia da USP.
Um colega indagou-me que camisa era aquela, disse-lhe ( num sotaque bem caipira) "É do time de meu irmão em São José, o São Benedito". Houve na sala uma gargalhada geral, risos de pessoas incapazes de enxergar as necessidades de um senhor franzino, mal vestido e calçando chinelos de vaõ de dedos.