MINHA QUASE PRIMEIRA NAMORADA.

Quando a televisão ainda era incipiente, e nosso povo menos insipiente, pois a ignorância quem nos trás é a televisão, que nos aliena e nos faz ver somente o que ela quer mostrar e tem interesse, as famílias eram mais unidas e mais fraternas. E a convivência familiar era mais íntima. Os membros das famílias reuniam-se para almoçar, jantar, conversar. Hoje, na hora do almoço as pessoas estão ligadas na televisão; os filhos menores comem jogando vídeo game, ou ligados na internet.

No fim de tarde, era comum as pessoas sentarem-se nas calçadas e ficar horas conversando com os vizinhos. Hoje, não conhecemos nem nosso vizinho do lado. No prédio onde se mora a maior intimidade é com o porteiro, ou com o zelador, de bom-dia, boa-tarde e boa-noite, quando damos.

Mas há alguns anos nada disso acontecia. No bairro onde se morava todos se conheciam. Ali se nascia; crescia-se e geralmente se morria. Todos eram amigos e a violência não grassava tanto como hoje. Havia as turmas. Hoje as gangues.

Tudo isso me veio à mente, porque semana passada revi uma amiga, se assim posso dizer – ela não me reconheceu e depois de algum tempo começou a se lembrar de uns poucos detalhes, de muito anos. Conversamos bastante, mesmo não tendo ela lembrado de mim, embora eu conhecesse praticamente todos da família dela e tivesse sido muito amigo de um irmão dela, e nossos pais trabalharam na mesma repartição.

Mas o assunto que trouxe um pouco de lembrança daquele tempo maravilhoso foi a quase minha primeira namorada. Vão estranhar o quase namorada, mas o caso aconteceu, e essa amiga que encontrei teve certa participação, como cupido, por ser amicíssima da minha quase namorada. Quando do nosso reencontro, veio-me à mente lembranças da juventude.

No final dos anos sessenta, como disse a televisão não nos dominava ainda, principalmente nas pequenas cidades interioranas, onde o poder aquisitivo era muito baixo; poucas pessoas tinham condições de comprar um aparelho de televisão. Nas poucas casas que havia televisão, às vezes as pessoas ficavam em pé na calçada, assistindo lá de fora aquela novidade.

E eu morava justamente numa pequena cidade do interior do Ceará, onde poucos aparelhos de televisão havia. Para se ter uma idéia, na minha rua mesmo não havia nenhum. A população da cidade talvez fosse de uns vinte mil habitantes. Não sei! Mas era pequena, onde quase todos se conheciam, principalmente os alunos dos dois principais colégios da cidade.

Como não havia nada para se fazer à noite, os mais velhos ficavam conversando nas calçadas até a hora de dormir, ou lendo, e os jovens saiam para dar uma volta nas praças, e lá ficavam andando até dez, onze horas da noite.

Aquilo era tão importante e social, que parecia festa e vestia-se a melhor roupa só para caminhar pra cima e pra baixo.

Normalmente, as praças tinham um formato redondo; enquanto uns ficavam arrodeando a praça à procura de paquera; outros formavam grupinhos para conversar, geralmente grupos de homens e grupos de mulheres. Raramente tinha grupos de homens e mulheres, quando acontecia na maioria das vezes era somente amizade, e muitas vezes, ficava-se numa roda conversando com a finalidade de se encobrir um namoro.

As mulheres quando saiam para passear, e olhe que muitos pais não deixavam, ou se deixava era somente em determinados dias, recebiam já a recomendação do horário para voltar e muitos ainda mandavam os filhos pastorarem as irmãs – o termo usado aqui no Ceará é esse mesmo pastorar – para não namorarem, ou não namorarem determinada pessoa. Embora houvesse muitos irmãos coniventes com as irmãs, outros eram radicais e cumpriam à risca as determinações paternas.

Os grupinhos ou as turmas eram quase sempre de uma rua; da sala de aula; de um bairro; daqueles com mais afinidade entre si; enfim as companhias dificilmente mudavam. As mesmas pessoas sempre eram vistas juntas.

Mas nestes passeios, tinha-se mesmo a finalidade de se paquerar. Não era outro o motivo. Como em algumas praças havia um televisor público, poucas pessoas iam pra ali para ver televisão, por que a televisão não despertava ainda nossa atenção. A não ser as pessoas já idosas que gostavam da novidade. Mas, nós, jovens, queríamos mesmo era olhar as gatinhas.

Nós tínhamos nossas paqueras, que ficava muita vezes só na troca de olhares, pois a coragem era pouca para se declarar, por vários motivos: falta de coragem mesmo; medo dos irmãos da menina – quando tinham; medo dos pais; e por aí vai. De vez em quando uma gata mais ousada mandava um recado, ou nós mandávamos e muitas vezes a resposta não era a esperada, até mesmo com gozação: “Diz a ele pra largar primeiro a catinga do mijo; ou eu não vou sustentar ninguém com leite ninho”. E coisas desse tipo. Mesmo assim íamos tocando a vida, felizes. Sempre na expectativa da noite chegar e irmos à praça, na esperança de uma noite melhor do que a anterior.

Pois bem, todos tinham suas preferidas, claro, assim como as que nos queriam. Certa noite, uma das minhas paqueras, chegou onde eu estava sentado num banco da praça, sentou-se ao meu lado e me ofereceu bombons. Fiquei assustado, trêmulo, mas ao mesmo tempo muito feliz. Assustado pela coragem dela, pois o Penteadeira estava perto, vendo tudo. Penteadeira era um irmão dela, bem mais velho do que nós, que tinha este apelido devido à sua bonita cabeleira, que ele não se cansava de olhar e de pentear, sempre que encontrava um espelho dando sopa.

Quando ela chegou perto de mim, já era por volta das dez para onze horas da noite, e quase todo mundo tinha ido embora. Movimento pequeno, com poucas pessoas ainda na praça, pois o movimento durante a semana dificilmente passava das dez. Mas depois de me dar os bombons, começou a conversar comigo. Conversamos algum tempo. Eu muito tímido, todo encabulado, confesso que não sei nem sobre o que falamos. Daí há pouco ela se levantou e disse: “Pacoti – assim eu era conhecido, já vou; meu irmão já está me chamando. Amanhã nós voltamos a conversar.”

Realmente, o irmão dela, nosso querido Penteadeira tinha feito um sinal, dizendo que estava na hora de ir embora.

Ela se levantou, e se foi! Eu fiquei ali sentado mais algum tempo, com o coração palpitando, quase saindo pela boca, feliz da vida. Ia namorar pela primeira vez no dia seguinte. Seria minha primeira namorada. Que maravilha! Pensei! Não imaginam como dormi, ou não dormi naquela noite. Sei lá. Pensando na Salete. Ah! É esse o nome dela. Acho que não disse antes.

A gata, muito bonita. Cabelos longos, muito pretos. Branca, mais alta do que eu. Rosto angulado. Uma beleza que chamava atenção. Muito esbelta. Ainda hoje, lembro bem da maneira como caminhava, e como balançava aqueles longos cabelos. Certas imagens não nos saem do pensamento, por mais que os anos transcorram. É. Era muito bonita mesmo. O era tem seu significado.

No dia seguinte fui para o colégio radiante. A alegria estampada em meus olhos e no rosto. Alegria que não foi completa , pois não a vi no caminho da escola. Essa era rotina. Quando passava em frente à casa dela, todos os dias para ir à escola, lá estava ela alegre, balançando aquela bonita cabeleira. Fiquei um pouco decepcionado, mas nada que me deixasse nervoso. Com certeza a encontraria na volta do colégio ou até mesmo ela tivesse ido na frente para me esperar mais adiante. Mesmo que não fosse isso, à noite nos veríamos, certamente.

Fiquei torcendo para o dia terminar logo. Ou melhor, antes do dia a aula mesmo, e eu ter chance de vê-la na volta do colégio. Finda a aula, saio. Nada. Nem sinal da mina, termo inventado somente anos depois. Outra frustração, que, entretanto, não me deixou desiludido; apreensivo tão-somente.

À tarde não passava. Nem fui pra quadra jogar futebol, como fazia todos os dias. Fiquei em casa; acho que com medo de me machucar e de noite não poder ir ao encontro da minha amada. É. Já era minha amada, claro! Ou nunca tiveste a primeira namorada para se apaixonar e sonhar com ela logo no primeiro encontro?

Pois bem, a tarde foi assim, longa e cansativa da espera. O tempo não passava e eu impaciente pra cima e pra baixo dentro de casa, esperando chegar sete horas da noite. Este era o horário que as pessoas começavam a chegar na praça; e ela era pontual, uma das primeiras a chegar, mesmo porque morava do lado.

Impaciente ficava pensando em passar em frente à casa dela. Como a casa era muito grande, provavelmente a porta da frente estaria fechada, e ela estivesse lá pra dentro estudando. Não teria como vê-la. Pedir alguém para chamá-la, nem brincando. Primeiro que eu morria de vergonha. Segundo que não saberia nem o que dizer. E terceiro se viesse a mãe ou o pai dela o que eu responderia. Que éramos amigos de colégio. Mentira que não colava. Ela estudava no Colégio Maria Auxiliadora, um colégio só para meninas; e eu no Ginásio Salesiano São Domingos Sávio, só para homens. Portanto, não havia como sermos colegas de colégio.

Outra mentira qualquer, naquele tempo não colava. Amizades entre homens e mulheres da mesma idade era difícil, e os pais das meninas não aceitavam. Por isso, restou somente esperar à noite. E a noite não vinha.

Finalmente, ela chegou. Ela, a noite. Não a gata. Sete horas em ponto estava eu na praça, nem esperei pelos amigos com quem sempre ia junto. Aguardando ansioso que ela aparecesse. Deu sete e meia, oito, nove, dez horas e nada. Fui embora. Só decepção. Talvez até desesperado. Mas alimentando a ilusão de vê-la no outro dia. Podia ser que o Penteadeira tivesse falado para os pais dela, e como castigo não deixaram ela sair naquela noite. Sem conversar com os amigos fui embora e eles não entendiam nada de nada. Não sabiam do caso, porque o que acontecera no dia anterior eu não havia contado para eles. Viram, somente, eu conversando com a menina, mas de nada desconfiaram.

Fui pra casa quase chorando. Não sei se chorei. Mas o certo é que a Salete sumiu. E sumiu sem nenhuma explicação. O pior de tudo aquilo foi ela ter me procurado, e depois sumido e eu ficar feito besta no meio da rua.

Dia seguinte nova decepção. Não a vi em frente a casa dela, nem no caminho da escola. Ela não foi de novo pra aula. Na volta também não estava.

À noite fui pra praça. À procura dela ou de uma explicação qualquer. Aí surgiu a resposta.

A menina era filha de um dos sujeitos mais ricos da cidade. Dono de armazém. Coisa grande.O pai, na noite em que eu e a Salete conversamos, foi embora da cidade junto com a família.

Correm muitas versões sobre o assunto. Como não me interessava, o que me interessava era o porque do nosso “quase” namoro e não o porquê da mudança dela e da família para outra cidade, não sei contar o que houve realmente.

Nunca mais ouviu falar dela. Por isso no início chamei-a de “quase minha primeira namorada” e usei o verbo ser no passado. Era em vez de é. Porque nunca mais tive notícias dela, muito menos da família.

Uma pena, podia ter começado a namorar ali. E essa frustração me atrasou um bocado. Não pela frustração em si, mas para arranjar coragem para cantar outra menina, afinal eu tinha doze para treze anos apenas.

Mas é isso mesmo. Se tivesse namorado ela, não teria esta história pra contar.

HENRIQUE CÉSAR PINHEIRO

AGOSTO/2007