Meu filme...

Se me permites dizer, fui um anjo do século XXI. Fui fruto do século XX, mas foi no século XXI que passei a desbravar os caminhos que minhas sementes um dia iriam cruzar. Devo dizer que nesse século curti de tudo que a juventude pode proporcionar, mas também muito labutei para firmar bodas de ouro com a vida, e, nesse mesmo século, ainda conseguir ir além da vida, firmando negócios inesperados com o plano transversal. Foi no século XXI que me deixei sucumbir para que novas sementes pudessem brotar do meu pó. Nesse século, tornei-me um pensamento maduro graças às fontes nas quais bebi. Mas apesar de tudo, deixei muito desconhecimento pois assim como tantos outros em alguns momentos também olhei para o mundo com pressa... Meu pecado.

Não fui uma presa política, ou mesmo a Mariele, grades arquivos que a memória humana jamais será capaz de apagar. Mas embora discretamente, perpassei por cada uma dessas correntes... discretamente sim, pois das mesmas participei de forma enfraquecida, enferma, limitada. Uma pobre colhedora dos desteceres da vida feminina, que em sua colheita vezes é interpretada pelo mínimo sentido das palavras desfiguradas das páginas de um livro nunca folheado.

Devo ainda me considerar um chão pobre por possuir riqueza nunca desbravada, uma pobre lavradora que descobriu seu sonho em meio à estiagem dos tempos, o sonho de seguir de mãos dadas com o vento rumo ao conhecimento. Sim, talvez tenha sido interpretada pelo sentido denotativo, pela superficialidade da pressa até mesmo no último soar do relógio, quando as feridas resolveram se abrir por entre as marcas já existentes... Marcas por ser mulher que viveu horrores por detrás das cortinas que era o seu sorriso, marcas por ser herança da labuta campestre, por ser filha da terra e com ela tecer sua morada, marcas por causar estranheza ao mundo “humano”.

Mas ainda assim, fui um anjo... Nos moldes do século que me criei, tenho orgulho de narrar um pouco do que passei, falar das rachaduras causadas pela água cada vez mais distante das fontes, das tempestades, mas, também escrever sobre o depois das secas, o depois das inundações. Agora posso afirmar: literalmente enfrentei o temperamento do tempo com as garras que só as sementes têm. Hoje, recordo que venci o conceito inicial que causei às muralhas do alheio, através da força, sem dúvida. Devo dizer que entre milhares e milhares de mim (sementes), tive sorte, porque pelo menos não morri para a morte e sim por conta dela.