O Temporal
18 horas da noite, dia chuvoso e cinzento com o ar úmido e fresco. Dentro do apartamento mal dava para enxergar a ponta do nariz, era um local pequeno e abafado, com o ar sufocante e pesado, o ar que circulava no local era gelado e carregado de energias tristes, a única fonte de luz do lugar estava vindo das frestas da porta que dava para o corredor do prédio.
Do lado de fora alguns passos são escutados e o barulho de um molho de chave, uma das chaves é encaixada na fechadura da porta, gira pra o lado direito duas vezes. A porta abre e o apartamento mórbido e frio é invadido pela quente luz do corredor, mas apenas por alguns segundos, Andrei, o dono do apartamento entra rapidamente e fecha a porta outra, por alguns segundos naquele o apartamento tinha sentido se aquecido.
Andrei está com a roupa molhada, tinha esquecido o guarda-chuva em casa, na sua mão esquerda ele carrega um saco plástico vagabundo daqueles de mercadinho de bairro. Depois de fechar a porta e sacudir se um pouco na falha tentativa de enxugar a roupa, ele começa a andar direto para a cozinha.
Coloca o saco sobre a mesinha da cozinha, retira o saco e de dentro dele tem uma caixa de cerveja em lata, daquelas bem baratas que você sabe no outro dia você vai estar de ressaca ou caganeira, ele usa a chave para ir cortando o plástico da cerveja, depois pega uma por uma e joga na pia da cozinha, liga a torneira para molhar as latas de cerveja e depois vai arrumando elas no freezer.
Depois vai ao banheiro, como mora sozinho, tudo seu já está em seu devido lugar, ele acende a luz, tira a roupa molhada e joga em qualquer canto, e cai debaixo do chuveiro, já fazia um mês que o chuveiro elétrico estava ruim e água estava tão gelado quanto o polo norte, essa seria a sensação, caso ele já não estivesse molhado e o tempo do lado de fora estava bem mais frio.
Terminando seu banho, ele se enxuga, deixando apenas o cabelo meio úmido, pega suas roupas de ficar em casa, uma calça cinza bem confortável, tipo aquelas que usam para correr, e uma camiseta preta de pano leve e bem cavada. Vai andando até a sala parando de frente a janela, ele vê que a chuva lá fora tinha piorado e agora era praticamente um temporal, dava para ver os clarões dos relâmpagos e o vento passando de forma rápida e violenta.
Ele tira um maço de cigarro amassado de dentro do bolso esquerdo da calça, olha pra ver se ainda tem algum, por sorte ainda tem três cigarros bem amassados, ele retira um carteira e vai desamassando ele suavemente, e coloca a ponta do filtro entre seus lábios, do direito ele tira um isqueiro barato e acende o cigarro.
Da aquela primeira tragada bem forte que enche todo o pulmão de fumaça, e relaxa tanto o corpo parecendo que a fumaça foi direto para o cérebro, e enquanto vê o tempo lá fora ele continua fumando seu cigarro, é ele relaxa, muito bom relaxante, o temporal lá fora, o frio do apartamento e a fumaça do cigarro que aquece seu pulmão.
Terminando seu cigarro, ele volta a cozinha para ver se suas cervejas estão geladas, coloca a mão sobre algumas delas, não estão como ele queria, mais ele está com muita sede para esperar elas gelarem mais, e pega uma das latinhas, fecha a porta freezer e em seguida abre a cerveja que faz aquele barulhinho característico quando é aberta, é como música para seus ouvidos.
Ele volta para a sala, e acende um abajur que fica perto da TV que está em cima de um rack pequeno, senta-se na poltrona que fica de frente para tv, mas ele não liga TV, fica olhando para seu próprio reflexo, acende outro cigarro, toma um gole de cerveja e fica olhando para o próprio reflexo na TV.
Vários pensamentos começam a vim rapidamente em sua cabeça, porque ele não reconhece mais sua própria imagem, ele pensa no passado, nos amigos que sumiram, os que morreram ou aqueles que o abandonaram apunhalando ele pelas costas. Mas ele tinha se acostumado com aquilo, superou tudo, não precisava de ninguém, começou seu próprio negócio, ganhando dinheiro de pouco a pouco até que conseguiu comprar seu apartamento, seu carro, que a pouco tempo ele tinha vendido e doado o dinheiro para o abrigo de cães.
Enquanto olhava para seu reflexo ele ainda pensava no seu passado, as mulheres que sacanearem ele, ele nunca foi um cara muito bonito e nem carismático, de certo ponto era culpa dele, as poucas namoradas que teve largaram ele sempre que conseguiam coisa melhor, ele se sentia usado. Mas ele também tinha superado tudo isso, agora ele tinha dinheiro, cuidava bem do corpo e da aparência e dentro do seu carro ele era como o rei.
Aquela cerveja e aquele cigarro barato tinha um gosto nostálgico, dos tempos que ele ainda achava que era feliz ou era e não sabia, quando o cigarro termina, ele da um pitoque nele acerta a tela da tv e cai no chão. Do lado da poltrona tem uma pequena cômoda, ele abre a primeira gaveta e tem vários comprimidos de tarja preta, ele tira três comprimidos e toma de vez junto com a cerveja.
Colocando a mão de novo a gaveta, mais a fundo dela, ele puxa seu revolver cromado .38 de dentro da gaveta, enquanto da uma boa olhada nele, ele deixa um sorriso sincero aparecer em sua boca, enquanto isso a chuva continua tão forte lá fora que a janela começa a bater e fazer uma zuada muito forte.
Ele empurra o serrilhado para frente, e abre o tambor do revolver, dentro dele só tinha um cartucho, porque era a única coisa que ele precisava, ele coloca a cerveja em cima da cômoda e com a mão esquerda gira o tambor do revolver o máximo que pode depois joga ele de volta para dentro, como ela não está travada nem nada, o ritual já está pronto.
Durante toda a semana de sua vida ele vem tentando e falhando, se fosse pra viver mais um dia, ele viveria, se não ele morreria feliz. Ele retira da cômoda uma foto dele mais novo com seus cachorros, que foram seus maiores amores, um cão macho alto e branco com algumas pintas marrons sobre o corpo e outro um menorzinho marrom com cara de sapeca, ele coloca essa foto sobre seu colo e deixa escorrer algumas lágrimas de seu rosto.
Ele pressiona a boca do cano contra sua têmpora o mais forte que pode, ele chora, várias lembranças passam por sua mente, memorias do passado, ele não aguenta mais, ele toma coragem e finalmente puxa o gatilho.
Lá fora o temporal fica mais forte, o vento bate com mais força contra a janela o barulho é muito alto demais para se escutar algo, apesar do vizinho de cima achar que escutou algum tipo de estouro, mas ele não liga, já está acostumado com os temporais daquela cidade que fazem as janelas ficarem batendo várias e várias vezes.
20 horas da noite, aquele apartamento continua frio e mórbido, com o ar mais pesado do que uma tonelada de aço, e a noite continua naquela cidade.
Em outro, um jardim claro quente e reconfortante, um jovem rapaz reencontra dois cachorros que vão correndo ao seu encontro e começam a lamber ele, diferente do apartamento de Andrei, aquele local parece ter muita felicidade.