O Carvalho

Não se sabe como começou. O certo é que as pessoas daquela vila acreditavam que um Carvalho imponente que ficava no meio do vilarejo tinha poderes mágicos. Existia até uma oração para se fazer quando uma necessidade tivesse passado para o lado do impossível. Pessoas ajoelhadas, com as cabeças abaixadas e com as mãos tocando a árvore e murmurando coisas inaudíveis já faziam parte do cenário do dia a dia daquele vilarejo. Muitos vinham de longe, peregrinos em busca de um milagre, um favor especial. Fotos de pessoas eram colocadas no pé da árvore e eram divididas entre os pedidos e os agradecimentos pela graça alcançada. A fama do Carvalho e suas propriedades mágicas começavam a atravessar fronteiras. O comércio ligado ao turismo agradecia. Peregrinos precisam comer e dormir e isto têm um custo, isto gera receita. Para comerciantes antenados a árvore era uma benção: produtos temáticos reforçavam seu orçamento. Mas a sombra do Carvalho não refrescava a alma de todos: a adolescência e o amor pelas aulas de filosofia calçavam o espírito de um rapaz, que já era crítico por natureza e ele ficava incomodado com aquela crença. A sua certeza na idiotice dos crentes até o deixava um pouco arrogante. Bem articulado, costumava dar um "baile" em defensores daquela fé, com argumentos bem construídos, que normalmente acabavam nocauteando argumentos com pouca sustentação. Um dia o rapaz viu um estrangeiro um pouco diferente, que olhava as pessoas rezando e fazia anotações. Parecia um repórter. O rapaz tentou aproximar-se discretamente para tentar ver mais de perto o que levantava o interesse daquela pessoa. Sua curiosidade esqueceu-se da discrição e foi surpreendido por um

-Ei você!

-Hã? Eu?

-É, você mesmo que está me olhando.

-O que?

-Como é seu nome? Você é morador daqui?

-Me chamo Pedro e, sim, sou daqui.

-Pedro, você poderia me responder algumas perguntas?

-Você é algum tipo de repórter?

-De certa forma pode-se dizer que sim. Na verdade sou escritor, me chamo Milton, e busco subsídios para um novo livro.

-E você acredita nisto?

-Nisto o quê?

-Nesta coisa de poderes mágicos de alguma coisa.

-Na verdade ainda não tenho a resposta, talvez minha pesquisa de campo possa me responder...

-E você ficaria decepcionado caso descobrisse que tudo não passa de um engodo?

-Por que a pergunta?

-Porque dependendo da sua resposta eu já sei o que você vai encontrar na sua "pesquisa de campo"...

-Como assim?

-Você buscará dados que confirmem o que você leva no seu íntimo.

-É um risco, é verdade. Procuro me policiar para que isto não aconteça, mas devo admitir que você tem razão.

-Uma resposta que me parece sincera. Gostei do que ouvir.

-Você me parece uma ótima pessoa para conversar. Ouvir o outro lado, já que aqui parece que todos louvam a árvore.

-Se você busca a confirmação dos poderes mágicos talvez não seja uma boa idéia, pois mesmo sendo uma exceção, tenho a razão do meu lado.

-Ah, aquele velho ditado: “Um com Deus é maioria”...

-Eu disse razão...

-Ok, eu só estava provocando ...- falou com um tom doce e divertido que tirava qualquer animosidade da frase. Pedro devolveu um sorriso que de certa maneira aprovava a brincadeira.

-Certo.

-E se eu dissesse o que você Pedro me disse e sabendo o que vai no seu coração a respeito deste Carvalho eu não poderia dizer que você buscou até hoje só dados que confirmem suas convicções?

-A escassez de argumentos faz com que as pessoas tentem se apropriar de argumentos alheios...

-Argumentos têm dono? Bons argumentos não podem ser replicados? Eles têm uma natureza exclusivista? - Pedro ficou um pouco desconfortável, mas para não cair em contradição foi obrigado a concordar.

-É verdade, mas tenho a meu favor que os casos que não dão certo são em número bem superior, só não tem a mesma publicidade. Ninguém fala que seu pedido não foi atendido. 1º para não se considerar um tolo que fez um pedido para uma árvore e 2º para que os outros não o considerem um tolo.

-Você já fez esta aferição? Este levantamento cairia como uma luva para minha pesquisa de campo.

-Claro que não fiz. Eu não teria a ajuda dos que não tiveram a graça alcançada. Lembra do 2º motivo que lhe falei? Estas pessoas não iam querer mostrar como foram idiotas em acreditar numa simples árvore.

-Bom o achar normalmente não fica do lado da razão. Preciso encontrar “idiotas dispostos” a me contar suas histórias.

-Você teria outra dificuldade: estas pessoas, por vezes cegadas pela esperança, acreditariam que algo que não aconteceu simplesmente ainda não aconteceu. Só a morte do ente querido ou algo parecido poderia ser capaz de abrir seus olhos, e sepultar a esperança.

-Onde você diz “cegadas pela esperança” não poderia ser teriam suas esperanças renovadas.

-Tudo bem, escolha seu nome, mas então qualquer melhora neste período incerto poderíamos creditar à sua “esperança renovada”, que não deixa de ser um efeito placebo, confirmando que o Carvalho não tem poderes.

-Pelo que eu entendi na sua lógica binária, o fracasso seria a única resposta. Se não fica curado, a árvore não tem poderes e se fica curado é o efeito placebo e a árvore não tem poderes. Como, nas curas, determinar se é efeito placebo?

-Como a árvore não tem poderes toda cura vem do efeito placebo...

-Você considera a árvore não ter poderes como um axioma. Mas eu poderia querer uma análise mais abrangente, questionando justamente sua frase. Será que a árvore tem ou não poderes?

-E você acha que observando e entrevistando pessoas com “suas esperanças renovadas” – falou com certo sarcasmo já que gostaria de ter utilizado “cegadas pela esperança” – seriam um método científico para apurar e ter dados confiáveis?

-Na verdade eu desconheço outra forma de conhecer um assunto a fundo se não mergulhar para conhecê-lo por dentro.

-No mergulho sua vista pode ficar turva...

-E você tem algum jeito melhor?

-Quem está em busca de respostas é você. Como você mesmo me disse considero um axioma a árvore não ter poderes, uma verdade inquestionável, então eu considero todo o esforço para buscar respostas uma perda de tempo. Caso tenha alguma descoberta extraordinária, por favor, me avise para que eu possa rever meus conceitos – pode-se notar certa arrogância e sarcasmo no tom de voz do rapaz. O homem sem aparentar ter ficado contrariado respondeu numa voz calma de quem entende a juventude:

-Vou buscar a verdade e mesmo que ela só confirme suas convicções, não me sentirei derrotado, pois como eu te disse procuro estar ao lado da verdade. Quanto à perda de tempo, isto é bem relativo. Perdemos tempo quando deixamos de fazer aquilo que gostamos. Eu gosto da investigação. – o rapaz sentiu-se um pouco sem graça por ter feito um comentário mais contundente e recebido do outro lado uma resposta num tom doce, mas que da mesma forma dava uma espetadela nas suas palavras. Pedro disse que não tinha tempo para perguntas, pois estava atrasado para a escola. Despediram-se.

-Quem sabe depois das aulas. Estou na pousada Graciosa tome aqui meu cartão.- o rapaz pegou o cartão e disse

-Talvez - e procurando parecer verdadeiro disse - De qualquer forma boa sorte - falou, mas ficou incomodado com o imaginar do imaginar a possibilidade de que, de alguma forma, aquele homem lhe aparecesse com alguma prova qualquer que estabelecesse como verdadeiro os poderes mágicos daquele Carvalho. De soslaio olhou para o Carvalho que lhe pareceu ainda mais imponente e parecia lhe observar. Está certo, foi apenas uma fagulha, a arrogância de suas certezas voltaram a assumir o controle e ele voltou apenas a ver uma grande árvore no meio da praça.

No caminho para a escola olhou para o cartão e viu apenas o nome, e um endereço de email. Pesquisou em um site de busca pelo nome do cartão. Nada. Nem uma única palavra. Nenhum perfil em redes sociais, Nenhum livro publicado. Nada.

Naquele mesmo dia, após as aulas, foi na pousada procurá-lo. A moça da recepção, que conhecia bem o Pedro disse que o homem estava nas mesas que ficavam no pátio interno.

Pedro pediu licença e viu um sorriso acolhedor e uma mão estendida oferecendo uma cadeira que estava ao lado.

-Que bom que você veio!

-Na verdade fiquei curioso. Você disse que era escritor, mas procurando por livros de sua autoria, não encontrei nenhuma publicação...

-Poxa muito obrigado pelo interesse. Na verdade não tenho mesmo. Já escrevi dois, mas tenho dificuldade em publicá-los, mas se quiser me dar a honra, posso passar o arquivo digital deles.- Pedro ficou meio sem jeito de dize não, apesar de que como a maioria dos jovens, que vivem na velocidade das informações on line e real time, achava que uma leitura que passasse de uma lauda uma coisa muito enfadonha.

-Pode ser. Estou em época de provas então não me cobre leitura. – Pedro procurou uma mentira inocente para tirar a pressão.

-Imagine, posso te enviar sem nenhum compromisso. Sem cláusula de fidelidade. Ok?!

-Ok. E então, conseguiu alguma coisa enquanto eu estava na aula?

-Conheci dona Belarmina, uma senhora idosa que me trouxe um caso curioso.

-Eu conheço dona Belarmina. É uma senhora de uns 80 anos que perdeu o senhor José, seu marido para o câncer. Sua história já é famosa. Depois da morte do marido ela foi retirar a foto do esposo que ela tinha deixado num porta retrato ao pé do Carvalho. Segundo seu relato, ela encontrou uma foto em que ele parecia diferente da foto que ela tinha deixado anteriormente. Nesta nova foto ele parecia ser dono de uma paz de espírito que confrontava com a foto sisuda que ela tinha deixado, tão característica das poses formais que ele costumava fazer para fotos. Ela creditou a troca a poderes mágicos do Carvalho, que desta forma tentava comunicar-lhe que tinha acontecido o melhor para ele, consolando, assim seu coração perturbado. Tenho para mim, apenas uma hipótese, que pode ter sido obra de sua filha, que vendo o sofrimento da mãe tratou de trocar a fotografia. De quebra ajudou nos negócios, já que ela é dona de uma das muitas pousadas que se criaram aproveitando casas grandes e adaptadas para acolher os peregrinos. Realmente a fé pode mover montanhas ...de dinheiro. Hoje sua filha é uma moça rica da sociedade emergente do nosso pequeno vilarejo.

-Não sabia que ela tinha uma filha dona de pousada...

-Na verdade isto não é muito divulgado...

-E se a gente colocasse uma foto dele sisudo ao pé da árvore e fosse verificar no dia seguinte...

-Você provavelmente ficaria decepcionado com a “mágica”.

-E então, topa?

-E como vamos conseguir uma foto do Sr José? Além do mais no momento que chegar a notícia para a senhora Belarmina da foto do Sr José ela simplesmente irá lá tirar e esclarecer que foi roubada.

-Quem disse que no porta-retrato vai aparecer a foto dele?

-Como assim?

-Oras, se a árvore é mágica deveria trocar a foto mesmo que esta esteja por detrás de outra que ninguém conhece. Assim deixamos lá e no dia seguinte recolhemos o porta retrato e verificamos como está o senhor José.

-É verdade. Você acaba de elaborar um plano do qual ficará comprovado o embuste que é esta árvore.

À tarde Milton iria, sob pretexto de saber mais da história da dona Belarmina tomar um chá. Na copa, ele já tinha visto sobre um balcão, dividindo espaço com biscuits, várias fotos de família. Numa delas o senhor José aparecia meio sisudo sentado numa cadeira, com a esposa e a filha de pé, uma de cada lado.

-Pedro, foi mais fácil do que eu pensei. Em determinado momento pedi um copo de água e dona Belarmina, muito solícita foi buscar na cozinha. Neste momento aproveitei para pegar a foto. Ela vai demorar a achar falta na foto dentre tantas que existem naquele balcão.

No começo da noite foram até a árvore. Tiveram que esperar um pouco, pois o Carvalho estava rodeado de pessoas que faziam preces. Conforme estas iam se levantando e saindo, eles iam se aproximando. Finalmente se ajoelharam e tocaram as mãos no Carvalho. Uma sensação estranha percorreu o corpo de Pedro que olhou para Milton dissimulando seu sentimento. O Carvalho parecia um corpo quente – deveria ser pelas diversas mãos que se revezavam em súplicas. Milton tirou do casaco sorrateiramente um porta-retratos e procurando cobrir com o corpo ajeitou-o por de traz de outros. Fez um sinal da cruz e levantou-se. Pedro levantou-se em seguida. Mas antes mexeu no porta-retrato para reparar melhor na foto que vinha cobrindo a foto do senhor José. Era de uma linda moça com sorriso angelical.

-Pronto está feito.

-De quem é a foto que você colocou sobre a foto do senhor José?

-Gostou? É da minha filha. Fazem dois anos que não vejo. Foi fazer um intercambio para estudar outra língua e me parece pelas conversas que temos que ela esta muito bem adaptada a nova cultura, pois até já arranjou um emprego numa grande empresa e não tem planos de voltar tão cedo ...

-Você simulou uma oração ou fez um pedido para a árvore? – Milton olhou o rapaz com certa indignação e arrependimento por ter falado sobre sua filha. Pedro percebeu e tentou se redimir – Também né Milton, vai que a foto do senhor José seja transformada, você poderia matar dois coelhos com uma só cajadada.

–Você gosta de expressões populares: eu diria que a emenda foi pior que o soneto. - o clima pesado foi cortado com um Milton tentando entender os motivos do rapaz – Deixa para lá Pedro, desculpe se fui rude. Minha vida não deveria ser da sua conta. Vamos nos concentrar no Carvalho.

-Desculpe Milton, não queria te deixar contrariado.

-Vamos tomar um café? – o convite parecia querer encerrar ali aquele mal estar.

-Desculpe, mas não vai dar, tenho aula amanhã cedo e preciso ir para casa. Nos falamos amanhã à tarde.

-Ok. Boa noite então.

-Boa noite. – Pedro pegou o caminho de uma viela, enquanto Milton voltava para a pousada Graciosa.

Pedro demorou a pegar no sono. Ficou pensando nos fatos que lhe aconteceram naquele dia. À noite teve pesadelos: raízes de uma árvore iam envolvendo seu corpo e levando para baixo da terra onde sugavam sua energia. Acordou na madrugada. Os lençóis estavam ensopados. O dia começava a nascer. Abriu a janela do quarto e deixou entrar uma brisa fresca. Foi tomar uma ducha e viu Maria, sua mãe levantando surpresa, perguntando o que tinha acontecido. Maria achou estranho ele já estar de pé, uma vez que sempre era uma luta para tirá-lo da cama de manhã. Pedro contou-lhe dos pesadelos e do escritor que ele tinha conhecido e do plano para desmascarar os poderes mágicos da árvore. Sua mãe não gostou e, mais uma das crédulas nos poderes mágicos do Carvalho, disse que os pesadelos já poderiam ser um tipo de resposta para brincadeiras com algo que podia ser mais poderoso.

Pedro riu e fez pouco caso

-Deve ter sido aquele chá que a senhora me serviu ontem à noite...Tinha folhas de carvalho por acaso? – disse divertido

-Você sabe que eu não gosto deste tipo de brincadeiras – Dona Maria arregalou as pupilas como uma criança que é pega fazendo traquinagens. Seu jeito entregava que, sim, ele poderia ter tomado chá mate misturado com umas folhas moídas de carvalho que ela tinha num pote que ficava junto com os remédios e outras ervas medicinais.

-Mãe, vamos fazer um trato, eu vou respeitar as suas crenças e a senhora nunca mais vai misturar folhas daquela árvore no meu chá. – Pedro não esperou pelo consentimento da sua mãe e saiu para o quarto. Aquilo não era o caso de um sugestão, tinha mais a força de uma lei suprema.

Eles não conversaram mais naquela manhã. Pedro tomou o café calado pegou sua mochila e ia saindo quando ouviu em tom de reprimenda da dona Maria

-Não vai dar tchau? - Pedro voltou e deu um beijo no rosto da dona Maria e saiu sem dar uma palavra.

No caminho, passando pelo Carvalho, resolveu ver se o porta-retrato ainda estava lá. Na posição onde estaria o porta-retrato tinha um papel dobrado onde se lia “Para Pedro”. Pegou o papel desdobrou e viu que ele envolvia a foto do senhor José sorrindo no meio da esposa e filha. Um calafrio lhe percorreu a espinha. O papel era uma carta do Milton e dizia que ele não tinha conseguido dormir e que no amanhecer foi tirar a foto da filha com medo que alguém pegasse. Viu uma foto de uma moça machucada e seu coração deu um salto. Para ele estavam confirmado os poderes mágicos daquela árvore e ele iria atrás da filha que poderia estar precisando da sua ajuda. Colocou a foto e a carta na mochila e correu para a pousada Graciosa. Perguntou para a moça da recepção sobre o hospede e ouviu dela que não havia nenhum Milton hospedado. Pedro disse que era aquele homem que ela tinha indicado à ele no dia anterior que estava no pátio interno. O olhar da moça não escondia o espanto típico dos olhares de quem vê um maluco na frente.

-Você não se lembra de ontem. Que eu vim aqui.

-Eu me lembro de ontem, mas não me lembro de ver você por aqui.

Pedro pegou o cartão e entregou para a moça. Ela olhou para o papel e disse

-O que isto que dizer?

-Veja aí o cartão que ele me deu...

-Olha tenho mais o que fazer – devolvendo, após uma rápida olhada, num cartão em branco – estou sem tempo para brincadeiras.

Pedro olhou o cartão sem entender nada. Pediu desculpas para a moça e saiu. Sentou na praça e ficou olhando o Carvalho. Tirou a carta e a foto da mochila. A foto era uma da família dele, com Pedro, sua mãe e seu pai sorrindo. E no lugar da carta do Milton, estava uma redação que ele tinha feito na infância para a professora sobre milagres. Ficou meditando sobre o que aconteceu. Não tinha como não relacionar o Milton ao Carvalho. A filha no exterior poderia ser seu alter ego e a adaptação a uma nova cultura poderia ser o deslumbramento de Pedro com a filosofia. Pedro ajoelhou-se ao pé do Carvalho e tocou as mãos em sincera oração. Pedro não tinha mais certeza de nada, mas tinha no coração a esperança que o Milton encontrasse e conseguisse salvar a sua filha. O Carvalho parecia vibrar de alegria. E estava mais imponente do que nunca.