O DESTINO DO REINO SOMBRIO

Os preparativos estavam quase completos. Seria a maior festa que todo o povo do reino Silva veria, que mundo todo viveria. Completariam seis décadas de um reinado de paz e muito crescimento. O Rei Lucius, já muito velho, fora o homem mais bondoso e sábio que o reino já conheceu, e trouxe a todos tudo aquilo o que desejavam. Sylva nunca fora antes um reino tão rico e realizado. Muitas festas haviam por lá, pois sobrava ouro e prata e não havia pobreza. As pessoas dançavam e cantavam e podiam andar livremente pela floresta, pois não havia mais inimigos e não havia mais guerra. O reino de Nix, um antigo adversário, havia sido completamente destruído, quando seu terrível rei foi morto na guerra.

Em um quarto no topo de uma das torres do castelo de Sylva, vivia um Príncipe, o mais belo entre todos que já existiram. Alacrias é um jovem guerreiro, ele veste uma armadura branca, pois esta é a cor da paz, e como nunca vivenciou a guerra, nunca pode lutar. Mesmo assim não havia uma pessoa em Sylva que duvidasse de sua força. Certo dia, seu pai Lucius entrou em seu quarto, pessoalmente. Alacrias sabia que sempre que recebia seu pai lá devia ser algo muito importante, pois quando não era este o caso, Benedita, o braço direito do rei é que se encarregava de trazer as mensagens. Ambos sentaram-se sobre a cama, e então o rei começou:

- Meu filho, Alacrias. O dia do Sol se aproxima. Os mestres me disseram que no dia em que completar sessenta anos de paz no reino, o Sol brilhará no céu como jamais antes brilhou, e o calor tomará conta de cada folha das árvores que existem neste reino. Fui eu que liderei este caminho de paz e crescimento, e o fiz de forma impecável e corajosa, no entanto meu filho, olhe para mim, eu estou velho e logo este reino precisará de outro rei, um tão bom quanto eu fui.

- Não fale assim, meu pai! Quando o dia do Sol chegar, haverá apenas motivos para comemorar, cantar e dançar. Seu reinado por muitos anos ainda há de durar, e mesmo assim, não sei se poderia assumir o teu lugar com a mesma bravura que você o fez.

- Não se engane, Alacrias. Não vim aqui para fazer um simples desabafo fúnebre como este. Minhas pernas velhas subiram todos esses degraus apenas para lhe pedir um simples favor, meu filho.

- Ora, então diga, meu pai. Farei qualquer coisa que desejar.

- Vá ao templo de Belenus, e pergunte ao mestre ancião quanto tempo mais meu reinado há de durar.

- Ora, mas não posso entender o motivo de tal pedido, pai. É claro que tu ainda viverás mais seis décadas!

- Peço-te este favor, filho, pois eu não ousaria por meus pés velhos lá. A chama da juventude ilumina apenas aqueles que ainda são jovens. Você precisa ir, e dizer-me qual será a resposta. Anunciarei ao povo mais tarde, no dia do Sol, quando é que deixarei a minha coroa.

- Não insistirei do contrário se esta é a tua vontade, pai.

- Em sua breve missão, minha fiel conselheira Benedita irá lhe acompanhar. Que os deuses iluminem o seu caminho, Alacrias.

E assim o jovem príncipe partiu. A mulher que o acompanhava era Benedita, a mão direita de Lucius, o Rei de seis décadas. Fora considerada a mulher mais bondosa de todo o reino após curar os feridos da última grande guerra com o Império de Nix, assim como curava todos os doentes de forma quase milagrosa sem cobrar nenhuma moeda, por isso foi escolhida como conselheira do rei.

O templo de Belenus não ficava longe dali, e não seria uma tarefa difícil falar com o oráculo dos mestres, de qualquer forma Alacrias não esperava por uma missão complicada. Tudo em Sylva vivia em paz. Chegando, um dos mestres os receberam. Ele tinha olhos claros como o céu azul da manhã. Ele disse:

- Iluminados sejam vocês, filhos de Bel. Por que buscam a sabedoria dos mestres?

- Meu pai, o rei, pediu para que eu viesse até aqui para falar ao oráculo do deus Belenus.

- É claro que pediu. Seu pai é um homem sábio e bondoso, e ele anseia pela palavra divina, no entanto este templo é abençoado pelo fogo da juventude, e somente tu, Alacrias, o mais jovem, poderá entrar.

O príncipe adentrou o templo. As paredes eram grossas e enormes e havia em cada uma das setenta colossais colunas uma tocha. Guiado por um segundo mestre, de olhos vendados. Ambos caminharam pelos corredores até chegarem a uma enorme fogueira, no centro de um amplo salão dourado. Um terceiro mestre, um velhaco que parecia um mendigo, o recebeu:

- Aqui está você, Alacrias! Seja bem vindo ao templo de Belenus. Eu sou o Mestre Ancião.

- Fui recebido por um outro Mestre que obrigou minha acompanhante a ficar lá fora por não ser suficientemente jovem para estar aqui. Somente jovens podem andar por aqui? O que faz então aqui alguém como você, um senhor de idade?

- A Luz não vê rosto, Alacrias. O Mestre de olhos luminosos não referiu-se à idade de seus corpos, mas ao estado de suas almas. Aquelas mais jovens e impetuosas são as permitidas entrar, e as demais o Mestre deve impedir. Desculpe-me se ao fazê-lo pareceu arrogante.

- Não foi, Mestre. Eu sou o filho do Rei Lucius, você já deve saber. A mulher lá fora é Benedita, a bondosa. Foi dado-me uma missão: vir até aqui para falar com o oráculo de Belenus.

- É claro que sim, a luz me mostra isso, filho.

- A luz? Quer dizer, o fogo?

- A resposta que procura está no fogo, não pode ver? Ele queima cada coisa que jogarmos ali dentro, e uma nova coisa há de surgir depois disso. O fogo vive, o fogo mata, ele renova. Por isso esta chama sagrada é chamada de Fogo da Juventude. Tudo o que existe nesta Terra há de se renovar.

- É exatamente sobre isso que vim lhe falar, Mestre. Meu pai precisa saber quanto tempo mais de reinado ele terá, para poder anunciar ao povo o dia de sua renúncia. Ele pretende fazer isso no dia do Sol, que já fora previsto antes pelos seus Mestres.

O Mestre ancião lançou seu olhar atentamente às chamas, como se visse por dentro delas. Em poucos segundo, pôs-se a falar:

- O dia do Sol há de chegar, e com ele virá toda a mudança. Mas nem tudo o que muda, morre. Muitos já estão morrendo, mas nada está mudando. Seu pai é um homem curioso, mas há bondade no coração dele, por isso os deuses hão de lhe dar a resposta para sua pergunta, mas não aqui...

- Onde então?

- Onde os ventos justos do Norte o levar, Filho. – O Mestre Ancião lhe dá um objeto - Leve esta tocha consigo, ela queimará quando ao teu destino chegar, e lá tua resposta há de encontrar. Mas esta tocha esconda muito bem, ou o fogo sagrado há de lhe queimar também.

- Então devo seguir ao norte até a tocha acender? Vou avisar ao meu pai, e logo começarei a caminhada. Muito obrigado, Mestre!

- Você é tão curioso como o teu pai, Alacrias. – Disse o Mestre antes que o príncipe deixasse o salão – Quando chegou fora guiado pelo mestre cego. Não está curioso para saber o porquê?

- Não quis perguntar, mas admito que sim.

- Uma alma jovem não precisa de olhos. A luz lá fora não toca os corredores profundos do nosso templo. Quanto mais profundamente caminhamos, menos precisamos ver, pois a chama sagrada há de brilhar intensa e eternamente aqui. Nesta jornada encontrará o teu conforto na escuridão, portanto leve contigo a tua coragem, a tocha e o conselho dos três Mestres de Bel.

O Jovem Príncipe deixou o templo rumo ao castelo outra vez para avisar ao seu pai a resposta do oráculo. Guiado até a saída mais uma vez pelo Mestre Cego. Lá fora, encontrou Benedita outra vez, que o recebeu curiosa:

- E então, meu príncipe? Tens a resposta que seu pai deseja?

- Tenho algo, Benedita, mas não exatamente o que ele espera. Hei de sair mais uma vez em caminhada para buscar a verdadeira resposta.

- Mas que resposta é essa, príncipe? Que pergunta tão complicada o rei o fez?

- Ele não te contou? Meu pai precisa saber por quanto tempo mais poderá reinar.

- Seu pai é um homem bom, e o melhor rei que o povo de Sylva já teve. Não sei o porquê ultimamente anda pensando tanto no seu próprio fim. Apesar de velho, Lucius é muito saudável, e digo isso porque sou especialista em saúde. Ainda há de reinar por muito tempo.

- Foi o que eu tentei lhe dizer, mas parece que algo o aflige... Parece que ele suspeita de algo que possa acontecer, parece que se preocupa com o futuro.

- Mas o que os mestres lhe disseram, então?

- Que preciso caminhar ao Norte para buscar a resposta. Avisarei meu pai e partirei amanhã.

- Ora, Alacrias. O que lhe disseram exatamente? Não pode ter sido somente isso.

- Disseram algo enigmático. Disseram-me que nem tudo o que muda, morre. Que muitos estão morrendo e nada está mudando. De qualquer forma, o Mestre Ancião pediu para que eu caminhasse ao Norte para encontrar a verdadeira resposta que meu pai precisa, e é isso que farei.

- É claro... Você precisa fazer. – Benedita assumiu uma expressão aterrorizante de medo.

- Você está bem, Benedita? Ficou pálida. Algo lhe preocupa?

- Na verdade sim, meu príncipe, mas não posso lhe contar ou teu pai louco ficaria.

- O que está insinuando? Escondes algo de meu pai?

- O reinado de seu pai tem sido perfeito. Não há guerra, não há crime, não há injustiça e sequer houveram doenças... Até pouco tempo atrás.

- Você cuida dos doentes. Está tendo trabalho com algo? Precisa de minha ajuda?

- Na verdade, depois do que os mestres disseram, sobre muitos morrerem, acredito que você precisa ver algo, mas prometa-me antes não contar ao teu pai agora. Certo?

- Benedita, você é uma boa pessoa, a mais bondosa que já conheci. Se não quer contar, é por uma boa razão. Eu acredito em você, e vou lhe prometer assim que ver o que quer me mostrar.

Os dois mudaram a rota e caminharam então até a casa de feridos, onde Benedita no passado costumava cuidar daqueles machucados em batalhas ou que sofriam doenças. Chegando lá, Alacrias fechou os olhos, pois não pode sequer acreditar no que via. Muitas pessoas doentes, totalmente fracas e debilitadas em suas camas. Havia sangue por todo o lado, e alguns mortos cobertos prontos para serem enterrados. Do outro lado do cômodo, um velho homem vomitava sangue, e não só sangrava pela boca mas também pelo nariz e até pelos olhos. Aterrorizado Alacrias disse:

- O rei precisa saber disso, imediatamente!

- Alacrias, não! O reinado de teu pai tem sido brilhante, e agora, depois de sessenta anos parece que a paranoia o alcançou enquanto ele diz diariamente sobre renúncia, velhice e morte. Seu pai espera por um tempo de escuridão depois dele, mas isso não há de acontecer, e você sabe disso, pois é o sucessor dele. Eu estou aqui cuidando dos feridos e tentando encontrar uma cura para os pobres doentes. Há uma epidemia maligna no reino e eu estou tentando evitá-la já fazem dias. Não estrague isso, eu preciso salvar essas vidas!

- Então peça ajuda ao meu pai! Ele é tão bondoso quanto você, o rei há de ajudar.

- Não peço ajuda ao nosso rei, pois o conheço bem, e agindo paranoicamente como está agindo, uma notícia dessa o traria apenas a loucura enfim! No entanto, é com a palavra dos deuses que peço ajuda a ti, nosso ainda jovem e futuro rei. Prometa-me não contar.

- E então, o que pensa em fazer?

- ‘Muitos estão morrendo e nada está mudando’ não foi isso o que os mestres lhe disseram? Temos que mudar então, e é claro que sua jornada é o início da mudança. Você deve caminhar ao Norte, imediatamente! – Benedita fuçou em suas coisas e agarrou um mapa, oferecendo-o a Alacrias.

- Eu irei, Benedita. Pelo bem de todos eu irei, mas somente depois de avisar meu pai.

- Avise-o e não ajudará metade do seu povo. A cada dia que passa mais pessoas estão morrendo e lá fora a epidemia continua a crescer. Se disser ao teu pai que deve caminhar ao norte, sem saber qual é o seu destino, ele não o deixará ir, não antes do dia do Sol que já está chegando, pois é provável que até lá tu não retorne a ele. Ele adiará o seu discurso para que você não esteja ausente neste dia sagrado previsto pelos deuses.

- Eu lhe prometo que não contarei nada, mas... Fazer algo sem a consciência de meu pai?

- Eu avisarei o rei sobre sua jornada atrás das respostas, não se preocupe, e o acalmarei se for necessário. Ele apenas não pode tentar evitar sua partida imediata, pois isso significará mais mortes.

- Prometa que contará.

- É claro que eu prometo, meu príncipe. Agora vá, encontre as respostas de seu pai e a cura para o seu povo.

Assim Alacrias partiu. O mapa apontava para além das montanhas como o norte, onde precisaria chegar. Não sabia o que esperar ao seu destino. Seria um castelo? Um templo? Mais um sábio mestre? Ou então algum outro reino desconhecido? – Não era possível adivinhar, mas o deus Belenus lhe disse para ao norte trilhar, e quando a tocha acender saberá então que ao seu destino finalmente chegou. Assim o fez.

Alacrias caminhou e caminhou, sem cansar. Não parava de pensar em seu povo e também em seu pai. A esta altura o rei já sabia que estava fora procurando por respostas. Depois de um dia de caminhada, o jovem príncipe chegou a uma bela cachoeira onde encontrou Monita, um estranho ser meio peixe e meio mulher, que o disse:

- Quem é você que se aproxima, belezinha?

- Sou Alacrias, filho do rei Lucius. E você, quem é?

- Monita, sou uma Ondina e vivo aqui. Para onde está indo meu belo homem?

- Estou procurando por respostas, e ao Norte devo encontrá-las.

- Se é assim, posso te dar uma dica: Siga as águas deste rio e chegará ao verdadeiro destino.

Alacrias notou que sua tocha não acendeu, e portanto julgou ser mentira o que disse a Ondina. Caminhou por mais um dia entre florestas densas e riachos perigosos, no claro e no escuro da noite. No segundo dia, enquanto descansava perto de um lago, outra Ondina apareceu e lhe disse:

- Para onde está indo, jovem? Parece perdido aqui.

- Estou procurando por respostas, e mais ao Norte devo encontrá-las.

- Mentira! Siga aquele touro negro, é ele quem te levará ao teu verdadeiro destino.

Mais uma vez a tocha não acendeu, e Alacrias ignorou o conselho. Continuou a seguir seu rumo, atravessou mais obstáculos, e no terceiro dia se sentiu muito cansado e perdido. Foi quando no alto de uma colina pôde ver uma construção, algo que parecia como um templo. Caminhou até lá feliz por ter encontrado seu possível destino. Lá dentro havia algo muito semelhante a um altar e um caldeirão que fervia um líquido fedido, composto por ervas desconhecidas por ele. Inesperadamente, foi recebido por uma jovem mulher ruiva de vestes longas e esverdeadas ele levou um susto:

- Quem é você? – Perguntou o jovem príncipe.

- Não. Esta é a pergunta que você deve me responder, Alacrias.

- Se já sabes meu nome, por que pergunta quem sou eu?

- Pergunto quem é você para me interromper aqui desta forma em meu próprio laboratório?

- Seu laboratório? Você é uma alquimista?

- Alquimista, feiticeira, uma mulher qualquer... Me chamam de muitas coisas por aqui. Mas eu sou apenas uma curandeira pra você. Estás doente? Precisa de meus cuidados?

- Ah! Eu sabia! Estava procurando por você. Aconselhado pelos três Mestres de Bel, caminhei rumo ao norte para encontrar por respostas e pela cura que meu povo precisa, e aqui estou eu, mas...

- Mas?

- A tocha está apagada. Ela deveria estar acesa agora que cheguei ao meu destino. Muito estranho...

- Não é estranho. Se não acendeu é porque ainda não chegou. Teu reino fica ao Leste daqui, não esteve caminhando ao Norte, príncipe.

- Estive, estou seguindo o mapa que Benedita me deu.

- Benedita?

- Sim, a bondosa. Conselheira do rei Lucius, meu pai.

- Deixe-me ver esse mapa. – Alacrias deu à curandeira o mapa, e continuou a falar enquanto ela parecia analisar o papel.

- Acontece que meu povo passa por terríveis aflições. Uma doença maligna assola o reino de Sylva, logo agora, dias antes da grande comemoração. Além disso, meu pai me fez perguntas, e só encontrarei a resposta quando alcançar meu destino misterioso, ao Norte.

- Não tenho as respostas. – afirmou sem tirar os olhos do mapa.

- Mas é uma curandeira, e pode encontrar uma cura para a doença. Eu vi os enfermos, é horrível! Eles fedem, vomitam e choram sangue, e morrem secos.

- As flores nascem, crescem e morrem secas também.

- Não compare as vidas de nosso povo com plantas!

- Mas se comportam da mesma forma. – diz devolvendo-lhe o mapa - No entanto por aqui a maioria das flores não costumam vomitar sangue. Eu não posso ajudar você nem seu povo com essa doença, está além dos meus poderes. O mapa estava mentindo para você, Benedita errou, você esteve caminhando a Oeste o tempo todo, mas agora o mapa está corrigido. Siga os touros em sua migração, siga os riachos que saem da floresta e só então chegará ao seu destino.

- Achei que poderia me ajudar com a doença. Dê-me pelo menos um conselho então!

A misteriosa mulher moveu-se para trás de Alacrias, e sussurrou em seu ouvido:

- Para o poderoso vento do Norte, tranca as portas e boa sorte!

Quando Alacrias se virou, a mulher havia desaparecido, e ele saiu correndo dali sem entender muito bem o conselho da estranha jovem. De qualquer forma, agora ele tinha o mapa correto, e arrependido por não ter dado ouvido às Ondinas, seguiu rumo ao Norte por mais três dias. Alacrias seguiu os touros e depois o riacho até chegar em lugares montanhosos. Os dias pareciam cada vez mais sombrios entre as paredes das montanhas, e as noites ecoavam um silêncio tenebroso.

Já passara do sétimo dia desde que saiu de Sylva, e na primeira noite entre as montanhas fora atacado por uma matilha de lobos furiosos que lhe feriram de leve a perna esquerda. Mancando ele continuou rumo ao seu destino, e na segunda noite entre as perigosas montanhas fora atacado por uma dezena de corvos, que lhe perfuraram um dos olhos. Alacrias apenas sobreviveu ao ataque quando caiu ao chão tentando proteger o outro olho, e foi quando também encontrou um objeto no chão, semelhante a uma chave enferrujada. Guardou-a e seguiu o seu rumo assim quem o dia amanheceu, com um curativo na perna e outro no olho ferido.

Já era o nono dia longe de casa e o terceiro entre as montanhas, e foi nesta terceira noite que algo estranho aconteceu. Enquanto caminhava tentando encontrar um lugar seco e seguro para acampar, ouviu um grito de terror no horizonte. Embainhou sua espada real, e atento caminhou em direção ao som que havia ouvido. Suas pernas tremiam de medo, mas Alacrias é um príncipe valente e, mesmo com sua inexperiência, não temia um combate. Eis que chegou até uma encruzilhada, e ali encontrou uma moça de cabelos negros e vestida de vermelho, antes que pudesse investigar a mulher, ela disse em alto e bom tom:

- Não te aproximas, pois não sabes quem sou.

- Então me diga quem é você?

- Eu sou uma bruxa e vivo sozinha entre as montanhas. Você é o intruso, não lhe devo apresentações, mas já que está aqui poderia me fazer um favor.

- Na verdade estou em uma missão importante para o rei de Sylvia.

- Eu sei o que procura. Eu tenho suas respostas e conheço um lugar quente e escuro, onde nenhuma tocha permanece apagada como esta que carrega esteve até agora, mas em troca lhe peço um favor.

Alacrias hesitou em aceitar, mas não havia outra dica para onde ir, se não a bruxa aterrorizante ali parada. Então decidiu:

- Diga-me o que devo fazer, e então me deverá as respostas.

- Siga pelo caminho a sua esquerda e encontrará uma casa, nela habita alguém que deve morrer. Mate-a, mas não com sua espada, pois sei que não seria capaz de fazer tal coisa, e só então provará que merece o que busca, e assim o terá. Caso contrário, vá embora, ou não sobreviverá por nem mais um dia entre as minhas montanhas.

Antes que pudesse fazer objeções, um forte vento soprou e a areia que com ele veio obrigou Alacrias a fechar seu olho direito, o único que lhe restava. Quando se recuperou, a bruxa havia sumido.

Precisou de alguns segundos para tomar coragem, mas o jovem príncipe trilhou o caminho a sua esquerda, e minutos andando se deparou com uma pequena casa de madeira entre as árvores. Esgueirou-se até uma das janelas e olhou adentro. Lá havia uma jovem e doce donzela, e armas pesadas penduradas na parede, além de peitorais feitos de aço. Um contrate tão belo e artístico, uma frágil jovem sozinha num quarto com armar e armaduras penduradas na parede. No entanto nenhuma delas eram de modelos femininos, o que fez o príncipe imaginar que poderiam ser de alguém próximo a ela, talvez pai, irmão ou então marido, mas a jovem era nova demais para ser mãe. Do outro lado do quarto, próximo a uma escrivaninha improvisada, queimada uma pequena lareira que iluminava todo o local.

O jovem príncipe não pretendia esfaquear a donzela indefesa, e jamais conseguiria, como previsto pela bruxa. Em frente à porta, pensando em entrar e matá-la com as mãos, Alacrias pensava sobre a situação, com muito pesar. Ele não era um assassino, e não pretendia ser agora, mas por outro lado, centenas de pessoas poderiam morrer se voltasse ao seu reino sem uma cura, e além do mais, ainda não tinha a resposta que seu pai pediu-lhe para buscar. Quando pensou em virar as costas e ir embora anunciar seu fracasso, ouviu algo dentro da casa e viu fumaça sair pelas frestas de madeira. Ele começou a reagir pretendendo avisar a moça, e chamou por ela, ainda fora da casa. Um vento forte soprou-lhe a face e veio-lhe a cabeça o conselho da feiticeira do Oeste. “Tranque as portas e boa sorte”. Instintivamente Alacrias tirou do bolso as chaves que encontrou no chão na noite passada enquanto os corvos o sobrevoava e colocou na tranca. Elas serviram! Notou que a moça ainda não percebeu o incêndio, trancou a porta e fugiu do local.

Chorando de remorso trilhou o caminho de volta, olhou para trás e viu o incêndio na floresta. Não encontrou mais a bruxa, então continuou para o Norte buscando um local para acampar, e procuraria pela bruxa ao amanhecer. Subiu e desceu uma colina, caminhou entre o bosque escuro e gelado, e ali encontrou uma montanha, e no topo dela, uma construção. Mais uma vez um local de pedra que parecia um templo abandonado. Parecia o lugar mais escuro e silencioso do mundo. Entrou, arrumou suas coisas para descansar, e antes que pudesse deitar sua tocha acendeu. Uma voz ecoou:

- Finalmente sua Luz chegou até aqui. Sejam bem vindo. – era uma voz firme e feminina.

- O quê? Quem é você? Como está me vendo se tudo está escuro, e até onde minha tocha ilumina, ainda não posso vê-la.

- Não preciso de olhos para ver, nem você precisa me ver para que eu esteja aí. Eu estou em todos os lugares onde a Luz do Sol não pode alcançar. Nos templos, nas florestas, nas cavernas, nos mares e dentro de você também. Eu sei o que você fez.

- Eu não quis matá-la... A bruxa disse que me ajudaria.

- Você não matou, apenas estava testando sua coragem, guerreiro, pois eu sou aquela que protege os corajosos em batalha.

- Então, você é...

- Sim, eu sou. – Interrompeu a misteriosa voz.

- O fogo sagrado está aceso, é o que importa, então é a você quem devo pedir ajuda, seja você quem for. Meu pai, o rei Lucius, precisa de uma resposta e o povo de Sylva está amaldiçoado.

- O povo de Nix também está. Já fazem sessenta anos que o rei Nox precisa de respostas. Eles hão de renascer, Alacrias, e ninguém pode impedir que isso aconteça.

- Nix? Está dizendo que o povo que fora aniquilado ainda vive? O povo que nos trouxe somente morte por tanto tempo?

- Não, não estão vivos, e a morte existe e ela é necessária. Se o seu povo não aceitar a morte, sofrerá com ela para sempre, mas nunca evitará que ela chegue. Saiba que, ao contrário do que todos dizem, o reinado de seu pai não foi perfeito, porque não existe perfeição sem o oposto dela, assim como não existe dia sem noite. Não existiria Sylva se Nix deixasse o mundo para sempre.

- Eu não entendo. Dê-me a resposta que preciso, dê-me a cura, por favor! Caminhei tanto e sofri muito para chegar onde cheguei. Belenus disse que este é o meu destino.

- Sim, este é o seu destino. Eu vou explicar o que ainda não entendeu: Seu pai não enlouqueceu, ele precisa da resposta de quando deixará seu reinado porque é sábio e entende que um dia terá que deixá-lo. Ele não anseia por este dia, mas aceitaria se soubesse que chegou. Benedita não quer que isso aconteça, ela também é sábia e entende que um dia a morte virá e a escuridão dominará o mundo mais uma vez, mas ela é bondosa demais para aceitar que a luz se vá. No entanto enquanto tenta curar os feridos, mal sabe ela que esta doença é a manifestação da morte, que todos sofrerão ainda mais porque ela não deixa que o ciclo se complete. Muitas pessoas fazem isso, o tempo todo. Evitam as suas sombras porque gostam da luz e tentam adiar ao máximo a morte, algo tão necessário para as plantas, como para os homens. Benedita sabotou o seu mapa na esperança que encontrasse uma poderosa força capaz de curar o seu povo, você encontrou, mas nem mesmo Ela foi capaz de evitar a morte.

- Os mestres disseram que o reinado de meu pai seria eterno.

- Eternidade nada tem a ver com a ausência de morte. Nem tudo o que muda, morre. E é hora de levar o povo de Nix para celebrar o dia do Sol. É o dia onde as coroas trocarão de cabeças. O fim das doenças, se é o que deseja. O fim de seu pai, se é a tua resposta. O início da escuridão, o começo de um novo ciclo.

- Insinuas que devo trair meu pai e meu povo? Entregar Sylva ao Império de Nix? Não o farei.

- Em Nix um povo inteiro também vive, de certa forma, espero que isso o console. Nox, o rei, aguarda pelo seu reinado sofrendo pela benevolência de Benedita... E a jovem princesa Mors é a mais bela entre todas as mulheres, e ela espera por você.

- Por mim?

- Sim, você. Há muito para descobrir além daqui Alacrias... A tocha está acesa e no centro deste templo há um lugar para ela. De onde ela veio, e para onde voltará. Você está no meio do espiral, no início e no fim desse ciclo, e não é a primeira vez que ele se completa. Siga o teu destino. Coloque a tocha em seu lugar e dê vida ao povo que substituirá Sylva pelo tempo que for necessário. Os preparativos do seu reino acabaram e estão prontos para o dia mais quente. Os preparativos do império de Nix também acabaram, e estão prontos para os dias frios que virão. Salve o seu povo, salve o teu pai, salve a ti mesmo. Aceita as Sombras em seu coração, pois aqui a chama sagrada há de brilhar intensa e eternamente. Ela não será esquecida, e como tudo na vida, ressurgirá.

Alacrias olhou para o horizonte mais uma última vez, e no topo daquela montanha pode visualizar as pequenas luzes festivas em seu povo, preparados para o grande dia. Provavelmente a guerra voltaria junto com Nix, mas agora, ele também estava preparado. O Fogo da Renovação foi trazido de volta. Tamanha foi a dor e a tristeza que o jovem príncipe suicidou-se em seguida, para a felicidade de sua secreta amada. Mors.

Lucas Häkkan
Enviado por Lucas Häkkan em 26/06/2018
Reeditado em 26/06/2018
Código do texto: T6374859
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