O SOL E A SOLIDÃO

Sentado na cadeira de balanço, vista esticando as pernas pela vastidão da tarde, magro e alto, ele sonha com olhos abertos nas lembranças daqueles tempos fogosos, rangendo a saudade no atrito da madeira com o chão batido do alpendre em que está. Fartura muita, muita festa, muita gente, nos arrastados das sanfonas e nos trinados dos triângulos e nos trovões da zabumba, ô festão. No alto dos seus 83 anos, lembranças doces amargas esgueirando-se pelo corpo só osso, mas rígido; cabelos ralos e brancos, olhos miúdos e xeretas, tinha do que reclamar, não. Pouco sorria, que rir muito é desfaçatez de aluado, cabra sem tino. A casa tinha seis quartos, casarão agora sem valia já que os meninos tinham arribado pra cidade grande. São seis, compadre, quatro machos e duas fêmeas, tudo encaminhado na vida: dois advogados, um médico – que mora fora - e um leso que se abestou em se formar em Letras, sabe Deus por quê! Cabra que se forma nisso vai viver de quê, de dar aula? As meninas estão bem, uma é Psicóloga e a outra é Economista, estão levando a vida. A mais nova faz um curso pra pastora, ela quer ser missionária, influência da mãe, que é crente. Num me meto, minha senhora aguenta minhas canas e nunca me criticou – num gosta, mas fica quieta. Vez em quando ela traz um pessoal da igreja pra cá, fazem um culto, nada contra. Até gosto das coisas que eles cantam, são afinados... Todos meus meninos me ajudam. Num preciso, mas eles ajudam. Compadre lembra, nos tempos da valia eu soube como empregar meus ganhos. Construí esta casa, comprei muito gado, vendi muito leite pra essa gente da vizinhança, vendi galinha, ovo que dava a fartar. Num sou rico, mas vivo com muita dignidade, graças a Deus!

Varreu a terra seca com os olhos e os sentiu marejar. O que restou daquilo tudo? Apenas uma ou duas vacas que ainda tinham leite nas secas tetas úberes; umas cabras poucas, uns bodes nenhuns, magote de galinhas tisgas. Passou a mão ossuda e grossa e espantou a lágrima, que homem só chora na presença da morte. Da cozinha vinha o cheiro da sopa de feijão e do cuscuz, que ele aspirou com tanta força que inchou o espírito. Tarde estava desmaiando, noite chegaria logo e os grilos e as cigarras sinfonizariam a lua, que já mostrava silhueta insinuante.

Aquele vulto no bem longe, era gente ou bicho de quatro patas? Estreitou os olhos, a poeira no vulto, tão seca a terra que bastava vou de pintassilgo pro pó se arreliar. Vulto se aproximando e ele já tinha certeza de que era gente. O que trazia gente praquelas bandas fazia ele quebrar e queimar os miolos, o que tinha aquela sequidão pra oferecer a alguém - a não ser algum espertalhão com o tino tinhoso querendo surrupiar alguma coisa deles. Dos tempos faustosos ficou a fama dele de gente de posses, vosmecê foi o único que pensou no futuro e soube ajuntar dinheiro e animais, construiu um poço que lhe garante água mesmo nessa seca pestilenta, murmurava o povo da cidade distante uns cinco quilômetros. Foramente os amigos e oportunistas de última hora, ninguém aparecia por aquelas bandas. Nem os meninos. Teve um de o convidar pra ir pra capital, passar um mês com ele. Queria não, mas a velha insistiu, mudar um pouco de ares, conhecer mais gente, velho. Ele foi. Passou uma semana. Aquilo nera lugar de gente morar, aquilo tava mais pra hospício, velha. De apoquentação basta a seca, o sussurro desse vento quente nas janelas, a angústia de inquirir o céu do porquê tanto azul sem nuvens... O que mais doía nele eram os fins de semana: ocos, de fazer gemer a alma, de reforçar os diques dos olhos preles não vazarem, aquela solidão a dois... Diferente dos dias fartosos, quando a vizinhança aportava em seu sítio; era leite de encher açude das vacas, bode e carneiros guisados, galinha cabidela, essas coisas. Os meninos, todos com o ginásio terminado, já se preparando pra tomar rumo da capital, fazer o científico e se preparar pras faculdades. Depois que se formaram, rarearam as visitas. O mais velho, formado em medicina, tentava consolá-lo nosso tempo aqui morreu, pai! Enquanto houve sonhos, valeu a pena. Hoje me pergunto como o senhor e a mãe aguentam essa solidão seca! Nem ele sabia! Não fossem os irmãos de fé de sua velha, as reuniões que eles faziam aos domingos e lanchavam e cantavam e faziam as orações... Lembra-se daquele juiz de anel ostentoso no dedo, metido a sabedor das coisas daqui e dou outro mundo, compadre? Veio sem ser convidado, estribado no título de “doutor”, arrotando sabença por todos os poros e cismou de conversar com minha velha. Logo com quem! Dizia-se dialético ateu, vomitando frases feitas tiradas dos muitos livros que tinha devorado com gana de esfomeado, com um gastar de saliva e língua numa decoreba de aluno incompetente, que faz tudo pra impressionar a professora. Vi os dois conversando, minha velha só olhando pra ele, sem mover nem os cílios. Com aquele jeito manso dela, de ter só o ginásio, com sabedoria e didatismo próprios, deu uma rebordosa nos costados do doutor dele sair com o charuto fedorento pendurado nos beiços, rosnando e pegando o jipe dele numa pressa de dor de barriga e de nunca mais pôr os pés aqui no sítio. Compadre lembra? Soubemos depois que passou o chicote da injúria nos nossos pescoços, bando de radicais desculturizados, jecas de sítios selvagens, idade média do século vinte. Rimos de doer bucho, minha velha com aquele riso de ninguém desvendar.

Pôs-se de pé pra receber aquele vulto de barba fechada, mochila, cheio de pó, montado em boa estatura, bem fornido de carnes, uma alpercata e calça desbotada.

- Tarde.

- Noite, respondeu. Quase noite. Vosmecê vem de longe.

- Muito longe. De chãos e terras distantes e diversas. E secas.

- Que nem útero de mulher imparideira.

- Vim perguntar do senhor se posso acampar por aqui. Só essa noite. Dormiria muito bem ali no curral, mas vai ter chuva. Amanhã cedo parto.

Ele se perguntou se o estranho estava de miolo mole. Talvez o sol, a sede...

- Chuva? Vosmecê não sabe, mas faz mais de sete anos que não cai gota dágua por essas bandas.

O estranho, com o rosto de pedra e um sorriso gargalheiro na alma, passou as mãos no rosto. Um cansaço de mil noites mal dormidas.

- Vosmecê me desculpe a franqueza, mas não costumamos receber estranhos na nossa casa. Vou consultar minha velha, saber do parecer dela. Mundo tá muito endemoniado, mazeloso. Aguarde só um tiquinho. Precisou chama-la não. Ela apareceu, no manso do arrastar dos pés, olhando pro estranho garboso e foi logo sentenciando vai dormir ao relento, não. Temos quartos suficientes pra vosmecê, quartos de sobra. Eles guardam ainda o cheiro e a saudade de meus meninos, que debandaram deixando a gente num banzo de desmamar nossa alma. Vosmecê se achegue. Estranhou os modos da mulher, sempre arredia quando se tratava de desconhecidos.

Estranho entrou, tomou um banho reconfortante, sempre calmo de deixar o anfitrião nervoso e avexado. Hora da ceia, estranho sentou à mesa, olhou sua mulher, baixou a cabeça e fez uma oração. Geralmente quem o fazia era ela, mas ela só baixou a cabeça e acompanhou o cabra silenciosamente. Ele, num espanto de quem viu visagem, só olhava os dois. Tinha coisa estranha ali, ah, tinha! Terminada a conversa com Jeová, o estranho esperou que eles se servissem e mergulhou no cuscuz e nos ovos fritos e na sopa de feijão. Cabra tava com fome, sim. Pediu licença e foi pra sala de estar, balançando a cadeira gerdau antiga, do tempo de casamento. Os dois ficaram à mesa conversando sabe-se lá o quê. Ligou o rádio e nas ondas curtas pegou piaba, de quase cair da cadeira.

Levantou-se. Na cama a mulher ressonava, toda encolhida. Desmaiou, coitada. Desde que os meninos se foram ela envelheceu vinte anos. Todos os dias arrumava os quartos deles como se estivessem lá, alisava as cobertas, molhava as cobertas com as lágrimas silenciosas, beijava as cobertas... O coração dele sangrava quando via ela sofrendo. Eles num podiam empatar a correria do tempo, muito egoísmo querer que eles ficassem naquele buraco seco e sem futuro... Deixá-los ir, mulher. Filho a gente cria pro mundo, sabes disso. E pensando nisso tudo, adormeceu.

Acordou com um estrondo de fim do mundo, assustado. É sonho, é pesadelo, danado era aquilo? A bátega quase furando o telhado, de fazer peru glugluzar, cachorro latir, boi mugir. Raio desnudou a noite e trovão emendou cantiga nos troncos e serras de nunca mais parar. Que horas seriam? Feliz e ainda assustado, eram quatro e pouco da manhã. Abriu a janela pra ver o espetáculo pelo qual esperava há anos. A dança dos raios, a zabumba dos trovões, os bichos no curral agitados, tinha coisa melhor? Barulho na cozinha, já? Encontrou a mulher com o café pronto, um rosto de riso estancado há anos, toda serelepe. Bom dia, marido. Bom dia, minha velha. Desde quando tá acordada? Desde que começou a chover. Meia noite. Desde meia noite estás acordada? Deu sorriso de sim, fui colocar tonel nas bicas pra juntar água, enchi as quartinhas, dei café a ele e ele já se foi. Disse que muito obrigado, que a gente num se preocupasse mais, muito feliz, marido, muito feliz. Ela olhou pra ele ainda não entendeste, né? Entendi o quê, mulher? Vem cá, deixa eu te mostrar uma coisa. Abriu a Bíblia – lá ia ela insistir em que ele entrasse na lei dela -, mostrou um capítulo e um versículo do livro que ele nunca lera: Hebreus 13:2: “Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, não o sabendo, hospedaram anjos”.

Olhou pra ela, balançou a cabeça ( num entendera nada) e foi apreciar o aguaceiro molhando e engravidando sua terra, as poças como miragens em deserto caatingoso, as árvores balouçando como em ciranda cirandinha nas rodas de suas crianças de tempos atrás. Nem se lembrava mais do estranho silencioso.

Matuto Versejador
Enviado por Matuto Versejador em 26/06/2018
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