Acasos do destino

Acasos do destino

Embora não me visse, ela olhava para mim; perceptivelmente aérea, como se estivesse em outra dimensão. Vejo-a tão frágil, uma vela tênue prestes a apagar...

– Não agora, não sem luta – Penso. Adianto-me, tomando-lhe o pulso - anunciava um coração prestes a desistir – como manter vivo alguém que não o queria? Grande parte do seu combustível rubro e borbulhante, esvaíra por entre o profundo corte aberto por algum artefato cortante...

Não conseguia entender, como alguém tão jovem e bela desistia de viver? Uma ninfa, assim a vejo - dotada de atributos físicos que qualquer mulher jovem pudesse desejar: cabelos negros e sedosos emolduram o lindo rosto adornado por enormes olhos verdes, lábios carnudos bem desenhados; pele alva e macia complementam o corpo curvilíneo. Com certeza, uma silhueta desejada até pela mais bela atriz.

Enquanto ajeitava a medicação, observava de soslaio aquele rosto - mais parece um anjo. Anjo triste, a olhar um vazio infinito sem pestanejar. As vezes uma lágrima deslizava fortuitamente, indo alojar-se entre mechas da vasta cabeleira dispersa pelo travesseiro.

- Moça! - Como se chama? – Pergunto sem receber sequer um olhar. - Ela não está aqui - Penso novamente - Desta vez, em alta voz.

Saio do quarto a caminho do posto de enfermagem, apanho a tabuleta de anotações que ainda permanecia sobre o balcão. Enquanto registro procedimentos realizados, busco resgatar meus pensamentos, até então presos naquele quarto. Obedecendo ao comando do dever, forçosamente retornam empurrados pelo som da campainha a transportar meu olhar para luz recentemente acesa: quarto oitenta e dois - o mesmo onde até poucos instantes meus pensamentos atracaram. Imediatamente volto para lá.

- Preciso morrer! – Deixe-me ir! - A vida é minha, ninguém pode impedir! - Estava agitada, debatia-se n’uma tentativa vã por soltar-se.

- Calma menina! Vai ficar tudo bem. - Digo observando as bandagens que a prendem.

Retorno ao posto, apressadamente preparo a injeção prescrita pelo médico plantonista - só deveria ministra-la em caso de agitação. – Feito. - Em instantes a garota adormece novamente serena.

Após exaustiva noite, a claridade finalmente penetra pelas frestas da persiana do posto de enfermagem. Amanhece. Alivia ver chegar a hora de voltar para casa...

Do lado de fora, uma manhã suave me espera. Como refrigério recebo a carícia do vento, contaminado pelo delicioso olor de outono. Aspiro e expiro, caminhando por entre as árvores; despem-se de suas vestimentas, formam um colorido tapete pelo solo do pátio.

Repentinamente sinto um arrepio frio, melancolia que aos poucos se achega. Penso no sentido da vida – Por que tantos não o encontram e tentam livrar-se dela? Sinceramente não entendo...

Dirigindo o velho fusca, sem pressa, observo as pessoas pelo caminho: sérias e enfastiadas, poucas seguem alegres a conversarem com seus parceiros, outras, totalmente inexpressivas. Paro no semáforo, algumas crianças se atropelam ao atravessarem na faixa a caminho da escola. Delicio-me com a cena - parecem um bando de pardais inquietos e falantes. Escapa-me um leve sorriso, penso que, não deveríamos perder nosso lado infantil, certamente seríamos mais leves...

O resto do caminho sigo sem ater-me aos pensamentos; ligo o rádio para espantá-los, também ao sono...

Exausta entro em casa depositando o agasalho em um canto. Acho que só agora me encontro... Atento-me à enormidade de tarefas a aguardarem minha disposição já extinta – Que me esperem! - Sigo direto para cozinha, levada pelo cheiro forte de café recém coado...

- Bom dia filho! - Já de pé? - O que aconteceu?

- Nada mãe. Só queria te fazer um mimo. - Disse abraçando-me.

- Não vai trabalhar cedo hoje?

- Não mãe. -Tenho alguns casos para estudar e tirei o dia para isso.

Carlos meu amado filho, formou-se em direito há poucos meses, é estagiário em um escritório de advocacia. Moramos num bom apartamento em bairro de classe média, única herança de meu falecido marido. Após sua morte, retomei o trabalho como enfermeira, profissão a qual exerci até ficar grávida, quando então, dediquei-me ao lar e a educação de meu filho.

- Quanto a mim, vou tomar café, um merecido banho, e em seguida cair na cama - Depois penso nas coisas por fazer.

- Mãezinha, já disse! - contrate alguém que possa fazer todo serviço - trabalhar vinte e quatro horas é muito estressante - quando chega ainda tem trabalho em casa.

- Nem penso nisso - Basta uma faxineira para fazer o trabalho pesado - o resto, faço como dá.

- Alguma novidade? - Pergunto, captando problemas no ar. Carlos parece nervoso - sei quando tem algo a dizer sem o conseguir.

- Não aconteceu nada mãe... Disse seguindo em direção ao quarto.

Após um bom sono, desperto ouvindo Carlos ao celular, pela entonação de sua voz, parece não querer que o ouça. Permaneço quieta, como estivesse ainda dormindo.

- E aí! Teve alguma notícia dela? – É louca! - disse que iria se matar.

A conversa fez meus pelos arrepiarem... Não quero nem imaginar. O sono chama, fala mais alto, novamente adormeço.

Desperto assustada e pulo da cama. Carlos ao telefone vem novamente à memória; olho as horas: quase hora do almoço. - Preciso agilizar - embora não trabalhe hoje, há muita coisa para colocar em ordem.

- Onde estará Carlos? - Perguntava-me enquanto seguia em direção ao escritório – aí, abro a porta devagar.

- Precisamos conversar filho. – Desculpe-me, mas, ouvi você ao telefone – Quer me dizer o que está acontecendo?

- Estou com problemas mãe, não disse porque não queria assustá-la. – Acontece que, eu estava saindo com uma garota. Descobri que ela está grávida e quis me afastar, porém, ela disse que iria se matar...

- Você engravidou a moça e quer fugir de sua responsabilidade? - Entendi direito? - Disse aos berros.

- Não mãe, não sou o pai! - Começamos a sair, ela não disse nada, mas, já estava grávida. Eu descobri e a deixei - Não vou assumir uma coisa que não fiz!

- Vamos esclarecer os fatos. – Como sabe que o filho não é seu?

- Estamos saindo há apenas um mês, ela está com três meses de gravidez – Encontrei o resultado do exame na casa dela por acaso, e quando perguntei, ela disse que se mataria se eu a deixasse.

- Deus, me ajude! - Não sei se acredito em coincidência, mas, no hospital ontem chegou uma paciente com os pulsos cortados - Algo me diz que há uma ligação com tudo o que está me dizendo...

- Como pode mãe? – Sei que ela não teria coragem!

- Qual o nome da sua namorada?

- Ana Amélia... - Ele respondeu cabisbaixo.

Tive que me sentar - o nome, atingiu-me como um raio - Era ela! - Só podia ser! - A menina do quarto oitenta e dois: Ana Amélia de Queiroz.

Carlos ficou lívido com minha reação. Sua voz saiu como sussurro: - Posso ir vê-la?

- Vamos após o almoço. – Vou com você.

Não sei como ainda consegui preparar o almoço, estava com a cabeça fervilhando. Durante a refeição permanecemos calados.

O destino nos prega peças, talvez por sua ironia, desde o início senti algo diferente, como se algo me ligasse àquele anjo. Acho que no fundo eu sabia, ela pertencia ao meu universo...

Chegamos ao hospital. Após solicitar e receber permissão, subimos ao quarto oitenta e dois situado no segundo andar. No corredor o ar permanece pesado. Carlos seguia calado, com os ombros arriados; pela primeira vez vejo o medo apoderar-se de meu filho.

- Esse é o quarto. - Eu disse abruptamente, parando em frente a porta.

- Mãe, deixe-me falar com ela primeiro. Depois você pode entrar. – Está bem assim?

- Tudo bem filho. – Vá!

E ele se foi. Entrou feito boi no matadouro - a responsabilidade pesava-lhe e sinceramente, eu não sabia como agir.

Após intermináveis minutos (nos quais, eu rezava para que tudo se acertasse) Carlos aparece com enorme sorriso nos lábios.

- Posso entrar? – O que houve? – Falou com ela?

- Mãe, nunca vi aquela moça antes! – Não é a Ana!

- Mas... – O nome dela é Ana Amélia de Queiroz!

- Pois sim! – O nome da minha “ex” namorada é: Ana Amélia de Assis.

- Acabei de receber uma mensagem dela - contou ao pai da criança sobre a gravidez e eles se acertaram.

- Graças a Deus!!! – Então, podemos ir? – Perguntei aliviada.

- Acho que vou ficar, só mais um pouco mãe – vou ficar conversando com a Ana Amélia. – Acho que ela precisa de mim...

Após um abraço, saí pensativa. Não havia como não perceber, era perceptível o brilho novo que surgia nos olhos de meu filho...

EMARILAINE
Enviado por EMARILAINE em 17/06/2018
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