Cello

Sim. Agora sim. Tudo faz sentido. Essa é a meta final. A resposta para todas as perguntas que te inquietaram a vida inteira. Nasceu pra isso. Cada passo, cada tropeço, cada corte, cada frustração, cada dor na sua vida serviram pra você chegar exatamente neste ponto que está agora.

Concerto de Cello No 1 em Mi Maior Opus 107 de Shostakovit

Nessa porra de mi que você tá tocando agora, na corda do cello que já tá quase rasgando a sua pele, vibrando no mesmo tom que você, a orquestra em volta, ornando seu som como uma moldura em forma de ondas. Seus músculos já se esqueceram de que tem mais de oitenta e sete anos, sua mente não se preocupa mais com a nostalgia dos dias que não foram vividos, nas horas perdidas, nos amores que não aconteceram, dos lugares que nunca foi, de tudo o que você queria ter dito, mas na hora não teve coragem, de todas brigas que você fugiu, todas as mulheres que não dormiu, toda raiva de não saber o por que desta existência medíocre e tediosa. AGORA tudo faz sentido. ESTA é a razão de toda dor. Você precisava disso para poder colocar agora a vibrar no seu violoncelo. Que tem um lamento tão profundo que o mais insensível dos seres se sente tocado. Só pra isso. Quase noventa anos pra serem usados agora, neste quarto de hora. No seu solo.

Aguentou mais de quarenta anos ao lado de uma mulher que nunca amou de verdade, por mais que tentasse. Foram quase felizes, mas a cidade cinza e o trabalho não dão muito espaço pra alegria. Os filhos foram criados entre grades: condomínio, creche, colégio, shopping, carro. Só não ficou louco por causa do cello. Era como se abrisse uma fresta entre o cimento e as nuvens, um raio de luz que lhe aquecia. Mas sempre o tolhiam. Quantas vezes teve que mudar de casa por culpa de vizinhos que reclamavam do barulho, mas passavam as noites brigando? Só depois de vinte anos conseguiu mudar para uma casa térrea. Foram furtados duas vezes enquanto viajava em turnê.

O instrumento era sua muleta. E hoje lhe dá adeus. É seu ultimo concerto. Escolheu a peça, um privilegio que se obtém quando é a despedida do musico mais antigo do grupo. Nunca foi um virtuose, um spala. Sempre foi um músico razoável. Não é brilhante, mas é como se fosse indispensável, unia e dava harmonia. Como um bom zagueiro.

Mas hoje é seu dia, vai solar, faz tempo que não sola. Antes do concerto estava até com medo, ansioso. Agora não, não sente mais nada.

Sente-se como nuvem, mas não como uma bonitinha, branquinha e fofinha, mas sim como uma cumulus nimbus. Uma muralha em forma de bigorna, com toneladas de gelo dançando dentro de si, com descargas elétricas que iluminariam uma pequena cidade. Uma tempestade furiosa que arrasa tudo o que vê pela frente, destrói quem se coloca em seu caminho. Está louco. Ensandecido. Já não lê mais a partitura. Entrou em transe. Fecha os olhos e abraça o instrumento como se fosse praticar coito. Já não toca uma nota de cada vez, mas duas, três, quatro notas num acorde improvisado na hora.

As velhas da fileira da frente finalmente prestam atenção na musica. Vão todos os sábados aos concertos apenas pra ocuparem os melhores lugares e falarem mal umas das outras entre sonecas no meio do número, mas elas agora estão bem despertas. Aquele senhor respeitável que toca há mais de trinta anos na orquestra da cidade está endemoniado. Os outros músicos gradativamente param de tocar e passam a ouvir embasbacados. O som, ao invés de diminuir, cresce, enche o salão como nunca antes fora ouvido naquela sala. é tamanha fúria e paixão empregadas no instrumento que o maestro se esquece de baixar as mãos e fica estático com a boca aberta observando o exato momento em que a corda dó arrebenta levando consigo mais outras tantas da crina do arco. Num movimento imperceptível o dedo passa a nota para uma parte mais aguda da corda anterior de modo que não se percebe o incidente.

Gotas de suor brotam de seu rosto e lágrimas começam a aparecer nos olhos mais sensíveis. Alguns espectadores sentem formigamentos na mão enquanto outros têm palpitações. As pupilas se dilatam e os corações passam a pulsar no ritmo da música. Ninguém ousa dizer nada. Até os pássaros e os insetos se calam. Um crítico musical que esta por acaso nesta cidade e veio ver o concerto pra não perder a noite de sábado não esta acreditando no que vê, esquece-se de tomar nota, e fica com o caderninho pendurado na mão e a boca aberta numa posição no mínimo cômica.

As pessoas não conseguem explicar a si mesmas o que esta acontecendo com elas, o que era aquela música, então simplesmente desistem e escutam.

Foram os vinte minutos mais sublimes já vivenciados por eles. Uma catarse estética coletiva. Alguns choram iguais bebês, outros estão petrificados.

Eu nunca falei com você. Apenas ouvi tudo agora na música. Cada gesto de mão é uma palavra, um lamento. Uma vida condensada e diluída numa caixa acústica de madeira. Uma dor que não pode ser descrita na literatura.

Finalmente, o grito final, como na morte do cisne, a última nota. Um acorde na verdade. Mi maior. O maior mi maior de todos os tempos. O mundo parou de rodar por um instante. Voltou lentamente enquanto a nota morria. Acabou.

Agora olha o chão como se já tivesse cumprido sua missão e não tem mais o que fazer aqui. Parece que envelheceu sete anos, mas seu rosto ganha serenidade. Levanta-se. Sai do palco. E então a plateia, que até agora estava embasbacada, lembra-se de bater palmas. É ensurdecedor. As pessoas sobem nas cadeiras, assobiam, gritam seu nome, lhe chamam de todas as maneiras possíveis. Você passou o demônio pra elas. Estão loucas, ameaçam quebrar o teatro se você não aparecer e tocar mais. Não estão preparadas pra tanta beleza. É como um homem sedento que morre afogado ao tentar aplacar a sede quando finalmente encontra água. Começam a quebrar cadeiras. Focos de incêndio nos cantos do salão. Correria. Um policial saca uma arma, tiros, sangue, caos. Isto aqui virou um inferno.

Entendi. É a sua vingança. Contra um mundo que só te deu cinza, ódio e dor você pagou com beleza. E isso foi mortal. Eles não estão preparados. Seus cérebros entraram em pane. Não conseguem compreender como algo pode ser tão sublime. É como se subitamente pudessem entender toda a extensão do universo, e o tamanho os deixa prostrados diante do absurdo de sua existência. Curto circuito. Só conhecem a violência, não conseguem transformar esta força que tomou conta deles em algo positivo. Estão se autodestruindo. Você os está matando.

Não sei o que te aconteceu. Ninguém sabe, sumiu após este ultimo concerto. A cidade tenta se recompor até agora. O caso foi abafado e virou tabu. O crítico musical tentou escrever sobre o assunto, mas ninguém acreditou e agora todo mundo acha que ele é meio amalucado.

Eu até agora tento entender o que aconteceu. O que eu sei é que depois daquele dia minha vida não é mais a mesma. Obrigado.

Rodrigo Margini
Enviado por Rodrigo Margini em 11/06/2018
Código do texto: T6361518
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