O Chefe
“Moro em minha casa própria, nada imitei de ninguém
e ri de todo mestre que não riu de si também”.
(Nietzsche)
Estava confirmado. Como sempre, o Chefe viria à nossa aldeia para nos dar sua grande mensagem. A notícia correu pela vizinhança. Daí à cidade foi como um raio. O regozijo tomou conta de todos, deixando-nos felizes e entusiasmados com a boa nova. Há muito que esperávamos por esta confirmação e agora era realidade. Os jornais deram as manchetes: “ENFIM O CHEFE CONFIRMA SUA VINDA”, dizia um; “EM BREVE O CHEFE ESTARÁ ENTRE NÓS”, dizia outro; “O GRANDE DIA ESTÁ PRÓXIMO”, manchetou mais outro. Embaixo das letras garrafais todos reproduziram o telegrama que confirmavam a vinda do Chefe: “O CHEFE VIRÁ PT SAUDAÇÕES”.
As rádios criaram vários concursos para que fizessem uma frase bonita de boas-vindas ao Chefe. Foi muito difícil escolher uma que fosse a vencedora, visto que eram todas muito bonitas e inspiradoras. Entretanto uma, que eram duas, foram muito exaltadas pelos ouvintes, pois lhes tocaram em demasiado o coração. As quais passaram a entoar pelas ruas:“O CHEFE SERÁ NOSSO GUIA!... O CHEFE SERÁ NOSSO MESSIAS!...”E uma terceira bem maior, cuja mensagem serviu como mantra para as diversas comitivas que iam adentrando a cidade, que dizia: Adoremos nosso CHEFE!!!... Ele é mil e uma noites!... Vamos todos lamber seu OVO!... Entoemos esta canção... “Foi meu chefe quem te viciou, foi teu chefe quem me ludibriou, foi o chefe quem nos ensinou...”
Cartazes foram espalhados pelos tapumes, postes, muros, avisando sobre a vinda do Chefe. O espalhafato e a expectativa deixaram a cidade em polvorosa. Os municípios vizinhos logo ficaram sabendo e confirmaram suas presenças, que viriam em grandes caravanas. O prefeito imediatamente providenciou uma área, a maior possível, já prevendo uma peregrinação gigantesca em direção a nossa cidade. O que foi muito acertado, pois que, o governador, sendo sabedor da visita do Chefe à nossa província convocou o povo de todo o estado para que fossem agraciados com as esperançosas palavras do Chefe.
O prefeito, informado de tal resolução pediu ajuda ao governo federal. Assim feito, o presidente concedeu à ajuda necessária e deferiu comunicado a todos os concidadãos para comungarem, como irmãos, o grande encontro com o Chefe, pois Ele assim merece todo nosso carinho, haja vista ser nosso guru, nosso grande Messias. E ordenou que os prisioneiros fossem libertos, os manicômios abertos, e que os médicos dessem altas aos enfermos. Prevendo o tamanho da multidão propôs que às TVs transmitissem para o país e o mundo, ao vivo, porque a cobrança estava sendo geral.
Todas as nações exigiam que fôssemos complacentes. E nos alertavam para que não usássemos de bazófia e presunção exacerbada em um momento tão sublime como este. Porque o Chefe não era propriedade de um único lugarejo, mas de toda a nação, que apenas fomos os escolhidos, cujo privilégio, não se sabe o porquê. E que, como diz o provérbio universal, “Nós não tentássemos em vão acender uma lâmpada para ver o sol”, porque só o Chefe saberá nos dizer a verdade. Dado que, para se chegar ao Chefe, de qualquer ponto que se parta o caminho é o mesmo. Diziam os circunvizinhos com uma ponta de cobiça, para não dizer inveja.
Os meios de comunicação, ouvindo todas estas lamúrias e henhenhéns, decidiram que a cobertura seria irrestrita: desde a chegada do Chefe nas fronteiras de nossa aldeia, fosse por terra, mar ou ar. Inclusive para o público local, pois em todas as confluências da cidade a imagem do Chefe seria vista sem nenhum prejuízo, uma vez que iriam usar o sistema holográfico.
Também ficou acertado que haveria um mestre-de-cerimônias para organizar as apresentações das personalidades desejosas de dar sua palavra em pró do Chefe. Os quais, já estavam confirmados: padres da Igreja Apostólica Romana, pastores evangélicos, kardecistas, monges budistas e vários chefes de seitas e candomblés. E que os ciganos, céticos e ateus, também tivessem um aparte reservados. Intelectuais e filósofos discursariam sobre a dialética e os preceitos civilizados, a ética, a moral humana e a morte da geometria. Conceitos idiossincráticos foram suspensos.
Os sacerdotes combinaram que se expressariam todos em uma só homilia, e irmanados em uma só voz. E algumas freiras e noviças diriam provérbios em línguas mortas e vivas. Entidades de classes também diriam alguma coisa representando um ou dois sindicatos e mais uns senhores e senhoras de diversas comunidades e associações de bairros citariam pequenos conceitos antigos. Grupos de jovens também foram inscritos, mas não se sabia ainda o que iriam dizer. (Talvez cantem um Rap) E outros tantos aproveitadores de ocasiões como estas não iriam perder o ensejo, assim, como os embaixadores, consulesas, ministros charlatões etc. Todos teriam direito a se expressarem.
Os países presentes, através de seus embaixadores e, ou, embaixatrizes diriam mensagens de conforto a seu povo. Por fim os políticos. Começando pela ordem inversa falariam: o presidente, o governador, um senador, um deputado, um vereador e fechando com o prefeito da nossa cidade, afinal, foi a nós que os desígnios nos confiaram tão grata missão, receber o Grã Chefe.
Tudo isso seria intercalado por grandes shows musicais e corais religiosos. Viria também uma turma de jogadores de futebol e artistas em geral. Enquanto isso nas praças e ruas artistas populares, entre tantos: cantores, trovadores, repentistas cantando versos, tocando safona, batendo pandeiro, cantando forró.
Numa simbiose de céu e inferno e a miscigenação do povo, formavam um grande circo pelas ruas. Grande era o lufa-lufa de gente, o vai e vem e a mistifórica desordem de religiões e profissões. Eram evangélicos gritando mensagens bíblicas, salvando almas, espiritistas reencarnando espíritos; ciganos adivinhado futuros, vendendo sorte; emgraxates lustrando sapatos, propagandistas vendendo remédio, bilheteiros lotéricos cantando números; trupes de malabares faziam suas apresentações com seus acrobatas, uns engolindo fogo, outros comendo vidro; contorcionistas, palhaços, equilibristas. Todos se equilibrando numa corda bamba: na arte, no trabalho, na vida.
A farrabamba estava posta.Tudo pronto, ensaiado e devidamente organizado. O grande dia chegou. Havia já cinco dias que o povo tomara conta dos espaços da cidade. E outros milhares ainda se dirigiam em grandes cortejos. Embora caminhassem ordeiramente era assustador o volume de pessoas que convergiam rumo ao local.
Caravanas em romarias seguiam passo a passo cantando emocionados hinos de louvores, ladainhas, musiquetas com refrãos apropriados, feitos especialmente para o Chefe, como: “Ele lá, nós cá, é Ele lá, lá, lá... Clamemos nosso Chefe... Viva Ele... Lá, lá, lá...” Não obstante, alguns engraçadinhos soltavam piadinhas malfazejas como: “Vamos rápido! Os urubus estão chegando... “Deus morreu! Deus está morto! Cuidado com o tatu! Olhe o tatu!... Pisaram no rabo do tatu! Viva o rabo do tatu... E vão todos à puta que o pariu... Uuuu... cacá... Uuuu... lalá... Que vá para os quintos dos infernos e nuca mais venha cá”- E cantavam:“Havia uma barata na careca do vovô, assim que ela me viu bateu asas e voou...” - Eram uns rebeldezinhos sem causa.
Expectativa e apreensão estampavam o rosto das pessoas. O Chefe estava chegando. Faltavam poucas horas, minutos, segundos. Quando de repente uma parte da massa em uníssono começou a entoar um coro ensurdecedor, retumbando palavras de ordem como: “O Chefe é nacional!” “O Chefe é internacional!” “O Chefe é universal!” “O Chefe é amor!...” “O Chefe é como nós, é trabalhador”. Era a turba dos desvalidos. Nesse instante ouviu-se uma voz solitária vinda do meio da multidão “O Chefe está nu!” Do palco, os músicos aproveitando a situação, responderam entoando em conjunto... “Are uh, are uh... vem meu guru, vem meu guru... are uh, are uh... vem meu guru... ó no má, ó no má... are uh, are uh...” ¹- Abrenúncio!... Credo; Deus me livre; vade retru!²... – Persignou-se uma beata que estava próxima ao palco.
Foi nesse entretempo que um dos sacerdotes se adiantou até o proscênio e pigarreou... “Hum... hum...” - Todos quedaram-se em silêncio para ouvi-lo. - Tenho um comunicado a fazer... Antes de tudo aprendam a sentir e a ouvir. Aprendam a habituar sua mente à calma, à paciência dos carneiros, pois só o Grande Chefe amenizará nossas angústias!... Este é o primeiro ensino preliminar para o espírito... - E as mazelas?... E nossos medos?...- Perguntou a multidão exaltada. - Acalmem-se! Vocês estão vendo, está aí o progresso crescente a olhos vistos, como podemos constatar em nossa vida diária. Nossos sonhos estão sendo realizados através das benesses dos empréstimos bancários em suaves prestações, o consumo de automóveis, geladeiras, fogões, TVs de plasmas, brinquedos plásticos, os fornos de micro-ondas, máquinas de lavar e toda essa tralha doméstica; corantes e xampus para os cabelos, celulares, medicamentos mais que necessários. Belas lingeries para as mulheres e uniformes para os homens e, claro, que Ele lhes dirá 1,2, feijão com arroz, 3,4 feijão no prato! Vamos cantem!... Louvemos o Chefe!
Dito isto, fechou os olhos e, numa pose insigne, dissimulando enfado, com um gesto largo e imponente falou em latim próprio de missa: - “Sursum corda... Corpus Christi, ego sum qui sum. Ab initio, ab initio. Ab imo pictore, ab imo Pectore!³” - “ab initio, ab initio... – Respondeu o povaréu a seus pés. –“Ab imo pectore, ab imo corde! ³*...” - Responderam os músicos no palco. - num gesto seco, de súbito, com o dedo em riste, apontou para o horizonte e gritou: - Ele chegou!... Vem dos céus... O todo poderoso... O Grande Chefe chegou!... - Os holofotes de laser, instantaneamente dirigiram seus focos para trás, em linha reta para as montanhas, lá no zênite, no recôncavo da abóboda celeste, iluminando os céus.
Por sua vez, as projeções holográficas estamparam desenhos psicodélicos emoldurando a imagem de um grande cavalo branco galopando a trotes largos. E sobre ele um menino nu e de boné. Ao se aproximar, lentamente apeou-se e caminhou suave, e como uma pena leve flutuou no espaço dirigindo-se em direção ao tablado, abrindo um largo caminho entre a multidão, que estupefata, assistia perplexa imagem tão bela.
Seu corpo alvo como alfenim, resplandecia tal qual luz neon. Seria aquele o Príncipe Venturoso? Ou Dom Sebastião, o Esperançoso que veio para nos salvar? Não, não era. Era o mensageiro do Chefe. E assim, sem cerimônia, subiu no palanque e, à boca do proscênio, com uma voz macia e ondulada, ao contrário da voz do Chefe, que era uma voz ranhosa e bruxelenta, anunciou: “Como sempre Godot não virá... Voltem para suas casas. Godot nada tem a dizer. Aguardem novo comunicado”. - A turba, numa só voz, exclamou – Óhooooooooo...
Ninguém percebeu, mas na aba de seu boné estava escrito:
“GODOT ESTÁ NA FORMIGA QUE PASSA
¹) Estrofe da música Govinda, de Walter Franco. (Adaptado).
²)Sai satanás,
³) Levantai os vossos corações... Corpus Christi, eu sou quem eu sou. Desde o início, desde a origem.
³*) Do fundo do peito! Dofundo do coração.