O Bilhete
Zé morava no interior e vivia se gabando de que não temia a Morte. No boteco da cidadezinha, onde costumava tomar uns tragos e botar conversa fora, contava vantagens e dizia que quando a "mardita" viesse buscá-lo, ele a enganaria mandando outro em seu lugar.
Em uma noite muito escura, voltando para casa já de madrugada, pensava em voz alta na desculpa que daria à esposa por estar
voltando tão tarde, ou tão cedo, como ele costumava dizer. Lá pelas tantas, foi atropelado por uma carroça que andava depressa demais. Uma figura esguia se aproximou silenciosamente, olhou no fundo dos seus olhos assustados e falou com uma voz doce e suave:
- Não se assuste Zé, pois vives a dizer que de mim não tens medo. Sou aquela que muitos chamam, mas na hora que me aproximo,tentam desconversar.
- Você é quem estou pensando?
- Sou sim. Chegou a tua hora.
- Mas dona Morte, eu ainda não te chamei.
- Não preciso ser chamada. Quando o vivente cumpre sua missão, tem de dar lugar pra outras alminhas.
- Vai me desculpar, mas não sou quem a senhora está pensando.
- Nunca me engano Zé. Além do mais fui eu quem assustou o cavalo para que fosses atropelado.
- Mas isso é injusto dona Morte. Tem tanta gente com mais urgência do que eu.
- Pode até ser, mas é você que eu quero hoje.
Zé tenta ganhar tempo:
- Porque não levas o "Zé Bixiga", que não tem família, nem emprego, só um vira-lata sarnento? Ou então o "Zé Furmiga", que é viúvo, vive sozinho num barraco de papelão esquecido pelos filhos que um dia teve? Olha, tem ainda o "Zé Novato" que chegou à vila a pouco tempo, sem eira nem beira.
- Não perca seu tempo tentando me convencer. Todos eles têm motivos pra ficarem mais um pouco. Já você, não tem mais porque permanecer por aqui. Me dê sua mão, vou levá-lo para conhecer um lugar incrível onde nada mais vai te faltar. Não sentirás fome nem sede. Não sentirás frio nem calor. Jamais terás pressa pra nada, muito menos se demorará para realizar qualquer tarefa.
Zé foi se sentindo seduzido pela voz suave da Morte. Olhando fixamente para ela, perguntou:
- Posso deixar um adeusinho para os meus amigos?
- Pode sim. Escreva um bilhete.
A Morte tirou do bolso, da sua longa túnica branca, um papel e uma caneta e entregou a ele, que escreveu: "Queridos amigos, ela veio me buscar. Não pude enganá-la. Ela é linda e tem o olhar mais doce que já vi. Como recusar um convite que é pura melodia? Transferir para outro as promessas do paraíso seria burrice. Até breve. Do amigo Zé."
No dia seguinte, todos lamentavam a morte do Zé. Só não entendiam o por que daquele ar de felicidade estampado no seu rosto pálido e a posição da mão que segurava um pedaço de vara, como se estivesse segurando um toco de lápis.