69 páginas de agonia

Eu tinha acabado de finalizar um conto. Apesar disso não me sentia satisfeito como era o usual após finalizar um texto. Talvez por isso eu tenha decidido o nome do conto por “69 páginas de agonia”. E realmente tinha sido uma agonia escrever aquilo tudo. Uma analogia próxima ao meu tempo escrevendo estas 69 páginas, seria como o processo de expelir cálculos renais. A dor é terrível, mas quando termina não existe um real alívio. É um incômodo continuado até que você sare por dentro. Sei exatamente do que estou falando por que já tive algumas crises de pedras nos rins, e não desejo dor semelhante nem para os meus maiores desafetos... - não.. talvez eu deseje para um ou outro um episódio desses na vida. Afinal, não sou mesmo nenhum santo.-

Eu ainda me sentia ardendo por dentro, como se faltasse algo a ser expelido para o papel. Mas o texto não permitia isso. Minhas últimas palavras tinham sido mesmo palavras finais. Eu teria que arrumar outra forma de me distrair da angústia que ainda me consumia as entranhas. Como escritor, eu nunca tive muito sossego. Sempre haviam idéias e sentimentos tentando escapar de mim, e nem sempre eu me sentia a altura de expô-los de forma fidedigna, ou que não soasse artificial. E para essas horas eu me reservava uma garrafa de uísque e frequentemente um ou dois baseados. Era o meu sossega leão, que no fim das contas não sossegava nada, mas me deixava num humor monossilábico.

E foi por isso que já depois da meia noite, eu abri uma garrafa de úisque barato e enrolei um cigarro de maconha e me postei à beira da janela pra olhar a lua se arrastando no céu.

Foi quando alguém bateu na porta.

Virei de costas e esperei que batessem de novo, torcendo que eu tivesse me enganado com o som.

Mas seja lá quem tivesse por trás da porta bateu de novo.

Apaguei o baseado a contragosto e o joguei num canto escondido da sala.

- Já vou. – Falei emburrado, enquanto catava uma bermuda jogada no quarto.

Depois de me vestir, abri a porta e dei de cara com uma mulher que eu nunca havia visto me encarando.

- Boa noite. – Ela disse, parecendo constrangida

- Boa noite. – Respondi, num misto de curiosidade e incômodo.

- Eu sou do apartamento 106. Sua vizinha de lado.

- Ah sim.

- O senhor está fumando maconha? – Ela despejou finalmente.

Procurei em seus olhos a motivação daquela pergunta. Mas eu nunca tinha sido muito bom nesse tipo de coisa. Então resolvi responder sinceramente.

- Estou sim.

Ela abriu um sorriso e enrubesceu.

- Posso fumar com o senhor?

- O senhor está no céu, minha jovem. – Respondi automaticamente.

- Ah ok. Desculpa. Posso fumar com você? – ela se corrigiu, encabulada.

- Tudo bem. – Respondi, pouco animado.

- Meu nome é Marília, qual o seu nome? – Disse enquanto entrava em meu apartamento e já ia procurando um lugar para sentar.

- Meu nome é Rômulo.

Ela se sentou no chão mesmo e olhou ao redor.

- Seu apartamento é realmente arrumado. Você é daqueles tipos bem organizados, não é?

- Na verdade não. É que minha mãe apareceu aqui ontem e enlouqueceu com minha bagunça, ao ponto de me dar uma chinelada e me obrigar a arrumar tudo com ela.

- Sua mãe é bem brava. Mas acho que no fundo todas são.

- A minha é bastante. Típica leonina.

Acendi o beck, dei dois tragos e passei para ela.

Marília pegou o baseado na ponta dos dedos e deu um trago profundo, e depois soltou um riso, como se a fumaça lhe fizesse cócegas. Deu mais um trago e me repassou o cigarro.

- Era disso que eu estava precisando – Disse-me – Não costumo ter muito tempo para fazer isso. Moro com meus pais ainda.

- Você é maior de idade, não é? – Perguntei-lhe, com medo que a resposta fosse não. Eu não gostava da ideia de usar qualquer droga que seja com alguém menor de idade.

Marília caiu na risada e me olhou com um olhar adolescente, o que me deixou bastante preocupado.

- Não, bobo. Eu tenho 22. Inclusive já te vi na universidade.

- Como assim?

- Eu estagio num laboratório próximo ao seu.

Nesse tempo eu fazia pós-doutorado, e não podia dizer que prestava muita atenção às pessoas do departamento que eu trabalhava. O ambiente da universidade era caótico demais para minha cabeça naquele momento, e eu me resumia a andar do meu laboratório para minha casa e da minha casa para o laboratório, quando não estava em algum bar das redondezas.

Uma repentina impressão de que realmente eu já a havia visto em algum lugar me fez sair da minha digressão e voltar ao nosso diálogo.

- Ah. Acho que já lhe vi pela faculdade.

- Quando vi que você havia se mudado para cá, resolvi vir lhe cumprimentar.

- Pensei que você tinha vindo por causa da maconha.

- Também, também. – Ela riu.

Ela era bastante risonha. E acho que o fumo havia lhe acentuado ainda mais essa característica.

Terminamos o cigarro e ela ficou olhando meus livros na estante, bastante interessada.

- Você tem muita coisa aqui.

- Eu gosto de ter o que ler.

- Dá pra ver. Gostaria de ter tantos assim.

- Vá comprando sempre que puder que você chega lá.

Ela percebeu o notebook, com o editor de textos aberto, e perguntou.

- O que você estava escrevendo ai? Algum artigo científico?

- Não. Um conto.

- Você escreve?

- Sim.

- Uau. Não esperava

- Nem eu. Até que me vi fazendo.

- É sobre o quê?

- Sobre mim. E sobre outras coisas.

- Tipo o quê?

- Sobre mulheres. Sobre embriaguez. Sobre tesão. Sobre ter tudo isso numa noite e acordar sentindo uma ressaca que não é só do álcool.

- Isso é meu confuso. Profundo.

- Gosto da parte que soa confuso, simplesmente por que eu não consigo tirar isso dos meus textos. Então é por que deve ser parte de mim mesmo.

- Eu posso ler?

- Depois que eu corrigir os erros, deixo na porta da sua casa.

- Uau. Eu vou ser a primeira a ler?

- Vai. Mas não é lá grande coisa. Então não tenha tantas expectativas.

- Isso é modéstia?

- Não. É minha autocrítica falando.

- Pois agora é que eu quero ler mesmo. Do jeito que tá.

- Ok.

Eu botei o texto para imprimir e lhe entreguei as 69 páginas.

Minha agonia dos últimos quatro dias e noites.

Ela se abraçou com o maço de papel e abriu o mesmo sorriso de quando eu lhe abri a porta.

- Vou ler hoje mesmo, mas agora eu tenho que ir.

- Certo.

Ela se levantou e saltitou até a entrada.

- Boa noite. – Disse-me, e me deu um beijo no rosto.

Observei enquanto ela andava furtivamente pelo corredor e desaparecia por trás da porta do seu apartamento.

Voltei para o uísque e para a lua, que já ia sumindo no horizonte.

Me sentei no chão ao perceber que por fim, a agonia havia ido embora.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 30/05/2018
Reeditado em 30/05/2018
Código do texto: T6350302
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