1046-A MAGIA DOS LIVROS -

Cada livro tem sua magia especial.

Quando ganhei de dona Julieta, nossa vizinha da casa amarela, o livro DOM QUIXOTE PARA CRIANÇAS quase perdi o fôlego. Tinha oito anos e estava no segundo ano do curso primário, portanto já alfabetizado, porém com acesso à biblioteca da escola limitado aos livros infantis, como Cinderela, Branca de Neve, A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho.

Começou naquele momento a mágica daquele livro.

Era um volume de capa dura, como dizem hoje “cartonado”, bem usado, ou seja, bastante lido, pois a costaneira estava rasgada e faltando pedaços, exibindo partes da costura dos cadernos.

A capa era sugestiva: Dom Quixote avançando para um moinho de vento. Folheei o livro: muitas gravuras entremeando os capítulos, as letras de formato normal, diferente dos textos dos livrinhos infantis que eram com letras grandes e poucas palavras.

A história clássica, de Miguel de Saavedra Cervantes, era recontada por Dona Benta e intervenções de Emília, a boneca de pano, criações de Monteiro Lobato no Sítio do Pica-pau Amarelo. Dezenas de gravuras impressionantes, desenhadas por um tal de Gustavo Doré, em branco e preto, me deixaram completamente fascinado. Parava para ver cada detalhe dos intrincados e super-realistas desenhos, imaginando o capricho e o cuidado daquele desenhista.

A mágica se então nos reuniu num encontro que durou enquanto eu lia o livro e até hoje, quando escrevo estas reminiscências, a sinto como se fosse ontem. Um encontro além do tempo e do espaço: eu, como leitor, Dona Benta (que mais tarde iria me inspirar na criação de uma personagem nas minhas histórias), Monteiro Lobato, com sua maneira única de explicar e simplificar a história clássica, o desenhista (mais tarde vim a saber que magnífico artista foi) e o criador do legendário Dom Quixote Della Mancha, Miguel de Cervantes. .

Uma linha invisível de uma estranha energia nos unia toda vez que abria o livro para ler com avidez e deleitar-me com as figuras.

Era o começo do ano (1943) e papai, quando me viu com o livro nas mãos, me disse:

— Aí você tem um livro pra ler até o fim do ano.

Qual o quê!

Muito aplicado na escola, os deveres de casa eram feitos em primeiro lugar, logo após o almoço. Em seguida, na parte da tarde, havia de ajudar papai ou mamãe nos que-fazeres de casa: algumas compras, capinar os canteiros de hortaliças e ajudar na irrigação da horta. Que era o final das tarefas que me competiam e ao Arthur, meu irmão.

Essas tarefas variavam do tempo que demandavam, e sempre havia uns dez ou quinze minutos durante os quais e corria a ler alguns parágrafos ou páginas de “Dom Quixote”.

Só após o jantar é que me dedicava integralmente aos encontros mágicos com meus amigos. Lia com avidez, sem prejuízo da compreensão.

Papai me perguntava:

— Então, já leu muito Dom Quixote?

Minha professora dona Marocas também se interessava pela minha leitura de Monteiro Lobato e me indagava constantemente se estava gostando, como era a história, coisas assim. Então, com minhas palavrinhas simples, eu resumia as últimas páginas lidas.

Aqueles encontros pelo tempo imaginário e pelo o espaço sem, através da mágica do livro, me influenciaram por toda a vida. Monteiro Lobato é meu escritor preferido e diversos contos que escrevi versam sobre ele, ou acerca do Sítio do Pica-pau Amarelo, ou a respeito de Jéca Tatu. Dona Benta me inspirou na criação de Vovó Bia, uma série de contos dos quais ela é a narradora de histórias para seus netinhos.

Persegui Gustavo Doré, cujo trabalho via pela primeira vez, e acho que já admirei, através dos diversos meios de comunicação, toda sua obra. E continuo admirando.

Quanto ao clássico Cervantes, com sua criação do “Cavaleiro da Triste Figura”, me levou pela primeira vez ao reino da aventura, da cavalaria e dos tempos históricos da rica Idade Média.

Ainda hoje, após tantos anos, encontro-me com eles — como encontro com os escritores, os pintores, os poetas, os compositores, pela mágica energia que une todos os artistas a seus admiradores através do tempo e do espaço.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 15 de março de 2018

Conto # 1046 da Série INFINITAS HISTÓRIAS.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/05/2018
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