Cai a noite sem luar e sem estrelas, nenhum ser luminoso brilha no céu. Vez por outra, o breu da noite é iluminado pelo clarão de foguetes, sinalizando a chegada de drogas ou a aproximação da polícia.

Longe da praia, as luzes de um navio, quebram o negrume da escuridão. Robert   apropria-se de um escaler abandonado. Rema... rema... Navega pouco e afunda.  O náufrago nada a braçadas por quase  uma hora e agarra-se ao costado do navio. Escorrega. Gruda de novo... Seus músculos fatigados o levam quase à exaustão. Ele insiste. Distribui o esforço físico entre os braços e as pernas, emaranhadas nas cordas da escada. Toca o casco do navio e descansa a meio corpo fora d’água. Relaxa. Recobra parcialmente as forças e sente  alguma coisa roçar-lhe a pele. Talvez uma serpente marinha.

Não fez nenhum esforço para evitar que ela se enroscasse nele, no pressuposto de que, se fosse mordido, o veneno poderia transportá-lo para o outro lado da vida, e poupar-lhe as aflições do  afogamento. Agarrou com firmeza a escada e lentamente, escalou os degraus de corda. Atingiu o convés e se arrastou deixando rastros de medo. Outra vez suas forças se esgotaram, e ele se estirou a fio cumprido no lastro do navio  e dormiu.

Ao primeiro raio de luz,  ele subiu no mastro, abriu os braços e se lançou como uma gaivota na corrente de ar. Voou além do horizonte. Daquele ponto, teve visão noturna do universo, todo o cosmo estava debaixo de seus pés.  Sentiu uma nesga  luz rasgar o negrume da noite.  Ondas amenas quebravam lentas e esbranquiçadas acariciando a  alma do náufrago. O farol piscava, mas não havia farol. Guiado pela luz de uma estrela, pousou na praia deserta. 

Não muito longe dali, espectros fantasmagóricos dançavam nas ondas esbranquiçadas. Vultos cambaios flanavam sobre as águas borbulhantes; almas benfazejas ou do mal, nunca se sabe! Alma penada. Talvez depenada. Implume de qualquer pena ou pecado, e  outras acinzentadas como que fumaça esvoaçante, revelando o negrume de sua má inclinação.

Sentiu que não estava só.

Extasiado, viu um homem de terno branco puxar a cortina que separava a luz das trevas. O cenário era de uma  brancura incandescente, nunca vista pelo olho humano. O céu se abriu, e no  albor infinito, translúcida imagem de uma  mulher se balançava numa cadeira  suspensa do chão. Tinha ela  o semblante calmo e aspecto jovial. Corina não envelheceu. No céu, não se envelhece. Nem morre.

O  sol parece se pôr  e não se põe.
 O vermelho-azulado assemelha-se ao crepúsculo da última hora e à aurora do  último dia. Um bando de pássaros voavam sobre a cabeça do visitante das estrelas. Algumas espécies conhecidas. Outras, nunca vistas na Terra. Passou a mão em seu  corpo. Não sangrava, não doía... Cenas do juízo particular desfilaram em sua mente:
 
Viu sete anjos e sete candelabros em volta de suntuoso trono. No meio dos candelabros, alguém semelhante ao Filho do homem, dizia: ‘Vai e toma o pequeno livro aberto da mão do anjo que está sobre o mar e profetiza de novo a numerosas nações, povos, línguas e reis. '
 
 Olhou para baixo e viu traficantes disparem saraivada de tiros contra pessoas que bebiam numa barraca de esquina na rua Ceará em Vila Mimosa. A polícia conta os mortos: sete.  Alguns  sem documentos foram reconhecidos por prostitutas como sendo o índio Arualdo Tupixá. Turíbio Soberbo, e Capistrano. Também o coronel Hostilio Habran estava morto.

Arualdo  fugia da perseguição de  um ajo torto, que queria arrastá-lo para as profundezas do abismo. Mas,  em seu socorro, um homem chamado  Juan, pegou-o pelo braço e o levou a uma mulher, com feições indígenas.
 
— Virgem de Guadalupe, este é teu filho, disse Juan.
—  A Mulher colocou seu manto sobre a cabeça de Arualdo, e quando ele despertou, ouviu o som de música celestial. Anjos enfileirados formavam o corredor de entrada, e em coro, entoavam cânticos de louvor a Deus.

A porta era  estreita, e ao lado dela, um ancião controlava o acesso, girando uma chave, ora para a esquerda, ora para a direita, de modo a abrir a porta ou fechá-la conforme o sentido que girava a chave.  O homem grisalho perguntou:
—Quem é você?
— Caburé.
—Diga seu nome de batismo.
— Arualdo.
A porta se abriu.
 — Entre. Disse São Pedro.
— Juan, quem é este outro?
— É o padre Davi. Ele tem proteção e recomendações expressas da Virgem Imaculada.
— Mande entrar.

Cavalgando um jumento, chega vindo das bandas da Paraíba, um homem magro, com ar de intelectual. Desce da montaria e se senta no monte Orebe.

—  Levante-se. Tire as sandálias porque o campo é santo.
— Oxente! Fui avisado de que minha festa dos noventa é aqui.
— O Senhor ficou três anos procurando o caminho. Foi chamado aos oitenta e sete. Está atrasado.
— Deus vos salve relógio que anda atrasado, serviu  de sinal ao Verbo Encarnado. Foram meus três anos de purgatório, concluiu Ariano.

São Pedro  conferiu. Era verdade o que o homem dizia. Embora muitos neguem o purgatório. Ele existe, mas não é um lugar. É um estado de espírito em que a alma ainda não pode apresentar-se diante de Deus.
 
— Amarre o  jumento lá fora e pode entrar — disse o porteiro — A Compadecida já mandou preparar o banquete. São muitos convidados.
 
Ariano levou muito tempo cumprimentando os conhecidos,  um por um. O cangaceiro veio-lhe render homenagem. O padeiro fez questão de que o convidado experimentasse o pão do céu. João Grilo tocou gaita e Chicola dançou,  fazendo graça. Padre Davi ficou calado. De longe, acenou com a mão. Estava acompanhado de muitos fiéis da Igreja, bem como de alunos  e professores do Marista. Todos sentados em torno de  uma enorme  mesa, como se estivessem numa reunião do Conselho de Classe. Ao redor havia vinte e quatro tronos, e neles, sentados, vinte e quatro Anciãos vestidos de vestes brancas e com coroas de ouro na cabeça. Três homens que tinham uma só feição e um só rosto, aproximaram-se dos recém-chegados. Também sentada no trono, ao lado do Filho, estava a Rainha.

Terminada a ceia, Davi foi convidado por  um anjo a passear no jardim. Passou por um corredor estreito que dava acesso a uma grande sala, aonde a assembleia dos justos participava da mesma  ceia.  A mesa assemelhava-se ao altar do grande sacrifício e dela saia um feixe de luz que iluminava toda a Terra. Depois disso, o padre viu uma grande multidão que ninguém podia contar, de toda nação, tribo, povo e língua: conservavam-se de pé diante do trono e diante do Cordeiro, de vestes brancas e palmas na mão. Em seguida, ouviu-se um coro de anjos que dizia:  ‘Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus do universo. Os céus e a terra proclama vossa glória. Hosana nas alturas’.

Padre Davi fez leitura do Evangelho, e  São Pedro, a homilia.

Só agora,  o índio Arualdo  entendeu o que ouvira antes e lhe pareceu obscuro. E curou as feridas  de sua  alma marcadas pela unha dos tatus que abateu e trocou na mercearia por uma dose de cachaça. Repetia  em sua mente as palavras lidas no livro sagrado: ‘Tudo o que se move e vive vos servirá de alimento’.  E não permitiu mais que sua consciência o acusasse de mais nenhum pecado. No entanto, não compreendeu, por que na Lei dos homens é proibido matar animal selvagem, e  permitido sacrificar uma criança no ventre da mãe.

Terminada a ceia, acompanhou o padre na caminhada pelo Jardim do Éden, e enquanto conversavam, afastaram-se dali, em direção a um campo aberto.

—  Então, Noé colocou animais na arca para alimentar-se deles?
— Ora, Arualdo! Tudo que se move e possui  vida  vos servirá de alimento, não significa que os animais foram colocados na arca para serem comidos por Noé e seus filhos. Examinemos cada coisa em seu contexto. Os bichos  entraram na arca para não serem exterminados pelo dilúvio.

Passou uma garça em vou rasante. Depois um bando de gaivotas sobrevoam o espelho das águas. Fernão pousa no capelo de um navio, ancorado longe da praia.  Acabara de chegar no céu.
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Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."
Imagem: Youtube.com