A lista de convidados dos Castro compunha um rol de amizades rotas: pessoas que preferiam não mostrar o rosto ao lado de Martiniano viram-se obrigadas a cumprir um compromisso social para que, no futuro, não lhes faltasse dinheiro nas meias e na cueca. E, embora procurassem evitar fotos que revelassem fatos, autoridades civis, militares e eclesiásticas, marcaram presença na festa de casamento da filha do bicheiro.
O casamento tinha sido um fiasco. Daniel estava bêbedo, e sequer pôde desabotoar o vestido da noiva. Casamento forjado: o pai de Daniel queria um neto sequestrável.
Morgana estivera no limbo à procura da tão sonhada felicidade. Mas no limbo a felicidade não estava. Elevou-se então, até às nuvens, navegando sem parar em seus projetos audaciosos de se tornar rica como o pai. Lá, ela viu o vento, com medo, esconder-se da chuva. E na curva da vida, a chuva retrocede temendo a tempestade. Aquele inferno não era seu.
— Quero anular nosso matrimônio, disse ela.
— Estás louca! E nossos filhos? Vai dizer que são filhos do adultério?
— Não temos filhos, Daniel. E se os tivéssemos não seriam filhos do adultério, porque quando me casei, o fiz de boa fé e consentimento. Só não sabia que...
— Podemos adotar um. Quem sabe a adoção possa estimular...
— Como? Se nunca tivemos sequer os ensaios preliminares à concepção? Compreendes?
— Impossível penetrar o misterioso labirinto do coração de uma mulher. Casaste comigo pensando em outro. Sequer conseguimos ser amigos...
— Amigos são estrelas, se a amizade sobrevive ao tempo, às intemperes naturais e ventos contrários; ou cometas que passam e só são lembrados em registros que anotam a dada de sua passagem. Temos apenas o registro de nosso casamento, mas não somos casados. Não vivemos a cumplicidade dos casais.
Mergulhada em profunda tristeza, a alma de Morgana busca ajuda na Igreja.
— Quero anular meu casamento?
O frei puxou do meio de outros livros a obra do padre Jesús Hortal, e entregou a Morgana.
— Leve para casa este livro. Leia e me procure depois, se achar que deve entrar com o processo no Tribunal Eclesiástico. A Igreja não anula sacramentos válidos. Há, no entanto casamentos que nunca existiram. Quer por impedimento, falha de consentimento ou falta de forma canônica. A estes a Igreja declara nulos. Anular o matrimônio é impossível. Declarar Nulo é outra coisa.
Frei Gaspar olhou por cima dos óculos.
—Doze meses e o ato não foi consumado?
—Não! Não foi!
E naquela mesma semana, Morgana protocolou petição no Tribunal Eclesiástico. O processo galgou a celeridade dos tempos modernos, de modo que, decorrido o tempo necessário para os trâmites legas, o Defensor do Vínculo deu seu parecer: “ nada tenho a alegar contra a nulidade.” Já em casa, Morgana leu repetidas vezes a declaração fornecida pela Igreja. E sua vida tomou nova direção. Olhou a replica das ninfeias, e logo percebeu que era falsa, de baixa qualidade e alcançaria pouco valor de mercado. Aquela obra jamais passara pelas mãos de Monet. Pensou despedaçá-la, mas a voz do inconsciente despertou: “qualquer dinheiro a mais que entrar no caixa ajudará nas despesas da viagem.” Ela vendeu também o piano de cauda. Aceitou a primeira oferta de uma quantia irrisório, suficiente apenas para pagar a passagem de ônibus até São Luís do Maranhão.
A ideia de sair do Rio de Janeiro vingou. Tomou vulto, principalmente, depois da morte de seus pais e de sua posse da Declaração de nulidade.
Foi.
Morgana viajou durante dois dias e pedaço de hora. Até que finalmente, a proximidade com mata atlântica trouxe-lhe recordações da Cidade Maravilhosa. Já não tanto maravilhosa quanto nos tempos de infância e juventude: os passeios na Quinta da Boa Vista, praia de Ipanema, Copacabana... Ela sentiu saudade das aulas do Marista, do Liceu de Artes e de muitas artes e travessuras que fizera quando criança: folguedos, jogos, brincadeiras no pátio da escola... O campeonato. O gol de Sivory no campeonato marista e susto do goleiro: “Nem vi a bola.”
Sentia-se só.
O coração carregado de tristeza, medos e pesadelos, ousava oferecer-lhe novo alento: Vida nova, tudo novo, muito novo... O coletivo seguia devagar, como se quisesse prestar continência à floresta amazônica.
No céu, nuvens dispersas, uma aqui outra ali. Pouco azul e muita brancura. Clarão. Sinal de que novo dia se levanta.
Tudo muito estranho. Desconhecido. Naquela multidão de passageiros, só conhecia a ela mesma. Saudade
daquela menina, quando, ainda criança. Pulando amarelinha que lhe desfazia as tranças...
Sorriu ao reviver as cenas do momento em que Robert lhe entregara o poemeto. Ela, musa inspiradora!...
Olhou novamente através da janela. Viu passar palmeiras, perfiladas como soldado, em ordem de batalha, batalha perdida da mata nativa de babaçual, contra a força poderosa do homem da moto-cerra. Fim dos tempos... destruição da Terra.
O ônibus seguia rumo da estação rodoviária. Agora, em vez de palmeiras margeando os lados direito e esquerdo da estrada, desfilam casas antigas e saúdam, sonolentas, os passageiros.
Finalmente, a Ilha do Amor é avistada.
Oh! que lindo horizonte, planícies e montes. Que maravilha!
E assim que guardou a bagagem no hotel, vestiu-se de praiana. Soltou os cabelos, calçou os chinelos e jogou sobre os ombros uma tanga.
Soprava suave o vento na Praia da Ponta. Ondas amenas e um sol carinhoso tocavam, delicadamente, a pele salpicada de sardas. Não tarda a onda, mansa e fresca, vem beijar os pés das morenas, ruivas e loiras. Mancebos de short e regata voam em suas pranchas na superfície das águas. A ilha parece sorrir nos azuis lenções do mar. Morgana se põe a comtemplar o céu rendado de nuvens, que chegam e se vão, carregadas de algodão e nenhum pingo de chuva. Sorrindo a onda quebra branda, no limite que o Criador impôs aos mares. Chega. Depois recua. Deixa quase nua a banhista displicente. De repente, a onda desfaz, as longas tranças da loira. E se vai.
— Morgana!
— Bob!...
— Há quanto tempo não ouço alguém me chamar por este apelido!
— Incomoda-se?
— Não, de maneira alguma! Gosto muito, faz-me lembrar do Rio de Janeiro, principalmente, os tempos de colegial no Marista.
Abraçaram-se cordialmente e o beijo que se dão os cavalheiros e as damas saiu sem prumo e escorregou no canto da boca de Morgana. Ela ficou vermelha. E tremeu. E sorriu. Passado o primeiro impulso, Bob disse acanhadamente: “Acidentes acontecem.”
O resto foi sol e mar; praia, pés na areia, areia entre os dedos... Robert enfiava os pés na areia, Morgana também. Protegidos por grossa camada de fina areia, os pés se encontravam, sem serem vistos.
***
Trecho de "Estrela que o vento soprou."
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