UMA NOITE EM MACAU

UMA NOITE EM MACAU

Após a separação, cheia de querelas, discussões, acusações e litígios, tudo o que era seu cabia em uma mala. Apenas uma mala. Pouco de valor restava ali dentro, apenas o frugal. Apenas o necessário para um acampamento ou para uma viagem sem volta. Não tinha dinheiro suficiente no banco para recomeçar uma vida. Nenhuma posse lhe restou. Nada. A enxurrada levou. A enxurrada com gravata e terno Dior. Nada, além da roupa do corpo e itens frugais ficou em seu poder. Tudo o que construiu em vida era para aquele casamento, e tudo ficou para aquele casamento, que dia a dia se distanciava de si. A porta fechada pela última vez ficava menor com a distância de seu prosseguir, e o horizonte parecia demais aberto como uma boca de baleia que iria engolir seu futuro.

Desnorteado a respeito do que fazer depois, decide arrastar sua vida naquela mala para algum lugar onde pudesse tentar a sorte, que não lhe sorriu muito nos últimos anos. Talvez fosse esse o destino dele, um pobre diabo que apostaria com a vida.

Entre as cegas diante de um atlas, aponta o dedo para um lugar qualquer. Para onde ir em desrumo. Tão frustrado com tudo estava que sequer temeu uma última traição de seu próprio artelho, o dirigindo para piores acasos. Seu fiel apontador caiu sobre Macau. A Sino-Vegas, a cidade onde se deleita com o exótico oriental emoldurando o seio ocidental. Ali era um ótimo lugar para, não recomeçar sua vida, mas por cabo dela. Com uma dose de luxúria exótica. Jamais em tempos de marido responsável imaginava visitar a cidade. Mas, nesse momento, despojado de tudo, não via outro brilho no horizonte mais satisfatório.

Arruma as malas e compra uma passagem. Estaria ali em poucos dias. Dentro de tuas economias, só conseguiu o pior lugar de um cruzeiro.

Na pequena cabine para dois, uma ripa de madeira engastada na parede de ferro como uma prateleira servia de cama. Teve, ao menos, a sorte de não ter companheiro naquela viagem. Esperava estar só.

O balançar do navio tinha especial efeito na cabine abaixo de tudo no casco, que era o que pôde conseguir com as parcas economias. Seu estômago vibrava tanto quanto o mar, mas, sem nada o que digerir também não se incomodou em expelir algo. Quatro dias de viagem e um quinto parado no porto de Cotai até finalmente liberarem os passageiros.

Temeu que não fosse encarado com bons olhos pela polícia alfandegária. Embora isento de qualquer maneira, a pouca mala e os poucos bens que poderia declarar e a falta de uma passagem de volta deixava a entender que não tem nada a fazer por ali. Um turista quase sem onde cair morto seria apenas mais um pedinte ou coisa pior.

Ainda assim, não o detiveram. Talvez um novo trabalhador braçal fosse necessário aos hotéis e cassinos na região.

Desce do navio e prontamente se dirige a Torre de Macau. Bela, com as luzes iluminando-a por baixo, dando-a um idílico tom. Nada mais receptivo e confortável para um sonhador como ele.

Retira a carteira do bolso de novo. Estavam lá, as poucas patacas que pode adquirir. O suficiente para um abrigo modesto e procurar algo a fazer. Dirige-se resoluto, sem parar para perguntar a ninguém o caminho. Apenas segue para a torre. A primeira coisa a se fazer ali seria vislumbrar Taipa e Coloane. Ver de cima os labirintos abrilhantados da cidade. E, confiando novamente no dedo que lhe deu a cidade no Atlas, apontar um caminho ali.

A torre desde sua base apresenta o que esperava vir. Shoppings, teatros, restaurantes. Lugares suntuosos e convidativos. Reclama novamente de suas perdas dos anos anteriores. Se ali estivesse antes, seria como um turista bem vindo, e não como um deplorável perdedor como se sentia. Não tinha dinheiro para nada, apenas para avançar ao cume da torre e ver o panorama esplêndido da região.

Atravessa a Ponte da Amizade entre Taipa e Macau a pé, fascinado com o reservatório que mais parecia um plácido espelho d’agua, apenas se movendo com pequenas marolas que as lanchas entrecortavam naquela superfície serena, que transformava a visão em um duplo cenário, refletindo com precisão os edifícios iluminados e a própria ponte que atravessava. Via seu gêmeo ali embaixo, seu único companheiro de caminho. Talvez a emoção o tenha tomado em um instante e teve a ilusão de uma assertiva por parte dele, expressão que ele próprio não tinha feito. Talvez fosse o destino de novo confirmando sua jornada.

Ao final da ponte, se apequena diante da torre. Um gigantesco monumento iluminado por luzes douradas, abrilhantadas ainda mais pelo dourado do crepúsculo. A cena o comove como nunca havia se comovido. Egoísta como era, como sua ex-mulher havia lançado inúmeras vezes em sua cara antes de cindir a união, ali ficou mais tocado do que o dia em que pegou em sua mão, com as juras que deu e não honrou.

Longos minutos de contemplação. O som alto e o brilho dos cassinos ao redor não eram suficientes para retira-lo de seu transe, quase religioso. Mas, um vulto avermelhado passa em sua frente, com uma fragrância de pimenta rosa, parecido com o perfume chinês que comprou uma vez para sua mulher, e um xale longo e avermelhado bailando como um apêndice dançarino.

Sai imediatamente da catarse e procura o que lhe havia feito voltar ao mundo. Uma mulher, de tez delicada e nívea, com os cabelos negros em coque presos por palitos adornados e um qipao rubro como sangue. Um xale transparente, também vermelho, parecia jogado displicentemente sobre seus ombros. Ela torna um pouco o pescoço, como se tivesse notado o olhar do estranho. Um sorriso convidativo de canto da boca pintada e outro sorriso nos olhos delineados o fizeram acreditar que deveria ir com ela. Talvez isso fosse o tesouro da noite, que sua figura anuiu quando trilhando as águas da represa.

A mulher continuava, seguindo para o casino. O deslumbrante xale parecia dotado de vida, pois bailava no ar. Um movimento de torcer para dentro em sua ponta se repetia, como uma mão chamando o incauto turista. Ele segue.

Em poucos passos já está no portal de neon. Um concierge solícito pega sua mala e casaco e aponta com a mão branca enluvada para dentro, para mesas disponíveis. Ele olha ao redor, procurando uma em particular e encontra com facilidade. Numa mesa estava ela, a mulher de xale, separando algumas fichas e pegando algumas cartas de um crupiê. Sozinha.

Ele troca quase todas suas patacas por fichas de aposta. Dirige-se a mesa em que ela está. Blackjack. Um jogo simples, pensou. Um novo sorriso encabulado da mulher o incentiva ainda mais a se sentar. Coloca tuas fichas sobre a mesa e pede para descer algumas cartas.

Um par de figuras. Vê sua companheira um pouco preocupada pedir mais algumas cartas. Estava confiante.

Coloca mais algumas fichas na aposta e a vê desistir.

Essa rodada era dele. E foi.

Começa a confiar mais no jogo. Um novo par de figuras como o anterior se apresenta para ele. Ele sobe a aposta. Leva novamente.

As rodadas seguem. E sua sorte também. Em alguns momentos, sua parceira estava quase sem fichas. Ele não pretendia deixa-la sair da mesa antes de se conhecerem. Perde uma rodada para ela propositalmente.

Ao fim da noite, conseguiu 10 vezes o que havia em sua carteira. Um jogo simples. Incentivado pela bela mulher, que parecia estar o apoiando a cada nova aposta. Cada vez que ganhava, principalmente da casa. Encheu-se de esperança. Ela certamente esperava algo dele aquela noite.

Sem antes trocar uma, ela retira um estojo de pó do bolso, faz sinal para ele de que iria retocar a maquiagem, mas com a mesma sutileza com que pediu para segui-lo antes. Ela sai, e dois minutos depois, o homem que havia marcado seu caminho por canto de olho, decide baixar o jogo e pegar as fichas. Era isso o prêmio da noite. Era isso que estava seguindo.

Segue o caminho, se afasta do salão e entra em um lugar mal iluminado que dava para os fundos do cassino. Pensou algumas vezes se ela realmente havia ido por ali. Até que vê seu xale caído no chão. Pega-o, o mesmo perfume de pimenta rosa que sentira antes. Vai até a comporta de saída de emergência no fim do corredor e continua sua busca pelo charme chinês.

Um beco, mal iluminado, mal cheiroso... Mal... Apenas uma pequena luz alaranjada iluminava o local. A luz também o fez distinguir um par de sombras. Ele se aproxima e vê. A mulher, abraçada a um chinês musculoso, sem camisa. Abraçada com lascívia, enquanto o chinês olha com olhar atravessado para ele. Levanta a mão livre, enquanto a outra embalava a cintura da mulher. Uma arma prateada, gigantesca, luzia na sua mão. Sem uma palavra, apenas apontou para o saco de fichas.

O homem entrega-o. Não foi o bastante para eliminar o desejo de violência do chinês. A coronha da arma desce como um martelo em sua cabeça. Tudo escurece.

Acordo com uma língua úmida. Um cão de rua. Sentia uma lancinante dor em um lado das têmporas, bem como um líquido viscoso escorrendo. Ao passar a mão, vê a cheia de um fluido grosso e vermelho, como o qipao da moça que seguiu. A carteira e a bolsa de fichas não estavam mais com ele. Rasgando um pedaço da camisa, tenta estancar o sangue, enquanto se dirige de volta ao cassino. O Concierge, embasbacado com a condição dele, ainda assim o informa que sua “companheira” havia retirado sua mala. Pergunta se queria que chamasse uma ambulância ou algo assim. Ele hesita por um momento, olha novamente para a Torre iluminada, e nega o auxílio. Iria novamente fazer o que pretendia. Subir na Torre, novamente buscando seu destino, mas agora sem o ânimo de qual seria ele como antes.

David Leite
Enviado por David Leite em 03/05/2018
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