Contando um conto
 
 
 
A fazenda  Lambari se levanta alvissareira.
O cheiro do café coado se espalha pela casa. Sobre a mesa, o  queijo-de-minas, e café no bule acompanham o leite in natura. Lá fora, os animais arreados, trocam de pé, enquanto a caravana faz o desjejum. Ninguém quer montar o burro Xerém.  Preso pelo cabresto ao poste da cerca de arame, o burro espera, cochilando, mas ninguém quer passar o vexame de ir montado nele: o passo Xerém é duro, mói as carnes, mas tem pé firme no pedregulho.  É seguro viajar no lombo de burro. A égua Leopoldina, ensoberbada, levanta uma pata traseira   e com   orgulho, zomba de burro Xerém: ‘Vamos ver quem escolhe quem.’

A cavalgada parte, mal surge medroso os primeiros raios do dia.   Na estrada, o cheiro da mata verde restaura o vigor da alma, e os cascos dos cavalos, passo a passo, marcam o  compasso da jornada. A alma viaja léguas,  açoitada pela brisa filtrada pelo verde da mata. Burro Xerém ergue as orelhas, na direção de um grilo que chora seu canto de morte, prisioneiro no rastro da onça que atravessara a vereda antes da madrugada e quase o esmagara. Cavalos e cavaleiros  avançam, ainda com a luz  acanhada do dia. A montaria é toda descansada. Mas os cavaleiros... Nem todos dominam as rédeas. Carlos Alberto Maia esparralha seus 120 quilos no lombo de Xerém, depois de dirigir horas pela estrada carroçável, levando a trabalha: barracas, mantimento e bebida.

 O sol tece o caminho, com a luz rendilhada entre os galhos. Desfaz o orvalho, enchendo  de perfume  da malva com que se  varre o forno de fazer biscoito. Os cavaleiros  mais afoitos vão à frente, exibindo vigor que não têm. Vencem as horas por léguas a fio, contadas no ranger da cela.  Nenhuma vela acendem aos mortos guardados  no campo santo. Descem, afrouxam os arreios e bebem cerveja. Conferem os freios, estribos e cilhas. E deixam uma trilha de comida para as raposas: farelos de pão e ossos  de galinha assada. Pararam por quarenta minutos, com o intuito de recobrarem as forças. Depois, arribaram.

Maia  que trocara o volante da caminhonete, pelas rédeas de um burro, já não é tão eficiente e audaz como ao volante.  Devagar,  vai rompendo estrada, preguiçosamente, no lombo duro do burro. Xerém sopra ofegante com o peso carregado sobre as costas: um fardo pesado de massa muscular e pecado. O suor escorre, desce salgando a pele e unta os rasgos de espora no vazio do animal. A cilha afrouxa. O burro abre as ventas. Sopra, e dois furos, renovam-lhe o oxigênio, toma novo ar de vida.. Também devagar vão mais dois cavaleiros, atravessados no selim da montaria. Aquele que perdera a carteira de carregar dinheiro distribui  o peso do corpo entre as duas pernas curvadas no loro. Depois, enrijece esticando uma delas e descansando a outra. Firma o pé esquerdo no estribo, e relaxava o direito... ou  firmava o pé direito e relaxa o esquerdo. Descansa um pé cansando o outro. Repete com frequência o movimento. Com efeito,  obtém bom  resultado: diminui  a pressão sobre a bacia,  e alivia   a dor das hemorroidas. O que Xerém sentia era que o ato de pender  de um para  outro lado o desequilibrava, tirando-o do compasso e da pisada dos cavaleiros adiantados. Cabia  ao Maia levar toda a tralha. Mas Monique não suportando mais a palha em que se transformaram suas pernas, propõe troca. Maia se consterna e pega a rédea. Xerém é andador, mas é duro. É um muro de parede. Não tem mola nem molejo para andar.

Dílson Júnior tira duas maçãs do alforje e oferece uma delas a Monique. Os dois mordem ao mesmo tempo, cada um sua maçã argentina. E o estalido assemelha-se ao barulho de carne arrancada de uma presa viva. “Seria este o significado da simbologia da maçã? Comer carne crua foi o pecado de Adão?” A voz que falava era de sua consciência. Lera muitos livros e nenhum deles revelava qual teria sido o pecado original. No máximo informava: desobediência...mas desobediência a qual preceito? A respeito, ninguém  afirmava,  taxativamente, apenas apontava uma seta: ‘Orgulho, desejo de ser Deus.’ A cavalgada segue. Persegue a estrada, rumo às margens do rio Congonhas, cujo percurso, prevê um descanso em Sete Passagens. A passagens guarda as águas  que saciam a sede,  e molham a terra, correndo, escorrendo  ladeira abaixo. Adiante um riacho e  uma nascente onde a  água corrente esconde a cobra verde. Na planície do monte, antes da grande serra que guarda a fonte da vida, fica  a morada dos mortos, viventes que não vivem mais, restos mortais daqueles que se foram e se despediram dos seus, até dia de juízo. O cemitério anônimo  faz memória àqueles que se foram, e recebe visita uma vez por ano no dia de finados.

Conte a história de teu avô Generoso e esqueça a minha — disse o doutor Godinho — Não quero ser protagonista de uma obra que leva o título, ‘Estrada sem fim...’ Não gostei do nome  do  livro.

— Nada está definido.
Cogito publicá-lo com o título A Dama do Metrô. Talvez   Deuses do Amor e da Morte, Sete Faces Congeladas, ou Estrela que o vento soprou.
— O Senhor tem preferência por algum destes nomes?
— Não posso opinar sobre o título, sem conhecer a obra.
— É verdade! O título de um livro remete,  de alguma forma, ao enredo ou leva o nome de personagens.
—   Publique logo, estou curioso para conhecer o livro, embora, de antemão, saiba que não presta.

Sem esboçar sinal de ofendida. Ravenala percebeu que podia colher bons frutos daquela conversa, aparentemente, áspera. Ela sabia que  os chamados ‘durões’,  têm coração gelatinoso, quando se consegue tocar em sua alma.

— O senhor nunca pensou em escrever.
— Escrevi ‘Cartas Não Postadas’.
— Publicou?
— Nunca postei.

Riram.
Ele prosseguiu.

—  Como descobriste a vocação para a escrita?
— Primeiro, é preciso encontrar o tesouro de Bresa.
 Fez uma pausa.
Depois, deve-se apostar na força da palavra e acreditar que ela é capaz de salvar o mundo.  Ler muito, estudar, criar e desenvolver  técnicas. Ter seu próprio estilo!
— Tudo que escrevo, vi, li ou me contaram. Isso não significa plagiar, mas recontar, reinventar, ou parafrasear. Penso reinventar a mim mesma, corrigir algumas arestas. Reparar defeitos.

 Riu
Faço isso transmitindo em partículas menores, meu DNA aos personagens. Traço para mim, novo perfil, ou me desfaço de mazelas, pregando na testa das personagens aquilo que eu desejava ser bom ou ruim e não fui. Também é necessário exercitar a escrita e isso se faz lendo e escrevendo. Temo que minha longa explanação canse sua paciência — disse ela.
Continue, respondeu ele.
— Se esse livro  não servir para ser lido, pode ter outra utilidade. O que tens que fazer, faça logo...
— Não tenho pressa em concluir a obra.
O livro chega em fragmentos, retalhos de uma história, que muitas vezes nos surpreende durante a madrugada, e nos tira da cama.  Não vem  pronta e acabada. E mesmo quando a inspiração surge na magia das reflexões, vem desordenada. Carece por a casa ordem e ordem na casa. É isso que leva o leitor a querer passar para o outro lado. “Eu diria isto de tal ou tal modo...” Mas nem todo bom leitor, torna-se escritor. Digamos escritor famoso. Lido e relido por muitos gerações. A vocação, se manifesta, inicialmente,  no gosto pela leitura. Depois é que se desdobre a vocação para escrever, porque pensamentos passam a incomodar. Ideias chegam e se vão e precisam ser catalogas em alguma forma de registro. Como já foi dito pelos antigos romanos: “ As palavras voam. A escrita fica.” As próprias palavras  insistem para que se façam memória delas. Depois se vão. Nunca mais voltam. Muitos famosos dormiam tendo caneta e papel  sobre o criado-mudo, para que  nem uma inspiração se perdesse.

Olhou em volta. Fez sinal ao garçom.
— Pois não!
— Duas xícaras de café, por favor.
— Aceito água mineral também — disse o doutor.
Ravenala deixou a marca de batom vermelho nas bordas da xícara, e retomou a fala.
— Ainda na fase de premeditação escolhe-se cenas e cenários, define-se o espaço geográfico onde o livro deve acontecer. Define-se também público-alvo, perfil dos personagens... Tem outros requisitos que poderiam ser listados, mas mudaríamos o fogo da conversa. Finalmente...
— Finalmente o quê?
— Finalmente, senta-se a uma  mesa com caneta e papel na mão e convidamos os personagens, para uma conversa olho no olho. Sentamo-nos à mesa com o personagem, face-a-face. Dá-se o pontapé inicial e a própria personagem ajuda a construir o enredo. No meu caso, como as personagens, em sua maioria, são reais, fica mais fácil sentar-se à mesa com elas.
— Sinto-me do outro lado da mesa. Sem ser previamente  consultado.
— Percebo que estou  sob a ameaça de ser processada por ferir o direito de imagem.  Não vou publicar imagem alguma, apenas o nome,  até porque, encarece a edição.
— O nome leva à imagem
O clima tornou-se favorável para uma boa conversa entre autor e personagem.
— Antes, falávamos mesmo  do quê? Perguntou ele.
— A última fala  foi sobre a caçada a uma onça em Sete Passagens.
— Você mistura tudo, menina! Não era sobre a cavalgada que falaríamos!
— Tenho muitas pautas. Daremos um ‘pincelada’ em cada uma delas, depois passarei tudo na peneira. Não quero ser repetitiva, a caça à onça foi narrada em pormenores, em outro capítulo.
— E por que põe outra vez em pauta?
— Às vezes, reforço a ideia para refrescar a memória do leitor.
— Não sou seu leitor.
— Um dia poderá vir a ser. E vai recordar-se desta conversa. Vai rir, vai discordar de alguns pontos.
— E xingar muito...Vocês não falam o que dizemos, e dizem o que não falamos.
— Então,  podemos alterar a pauta. Que tal a  Bonança? Sei que aquela fazenda fez parte de sua infância e juventude. Tenho pouca coisa anotada sobre.
— Não só da infância e juventude! Também da idade adulta.  Saímos certa vez à caça de uma onça, que estava dando baixa na miunça. Éramos uns quatro ou cinco, armados de cartucheira e munidos de lanternas.
— Como miunça o senhor se refere a que?
— Ovelhas! Meu pai não gostava de criar bode. Não tem cerca que segure bode. Eles incomodam demais a vizinhança.
— Não pensou em erguer telas?
— O custo é alto. E o mercado consumidor de Montes Claros, não despertou ainda interesse pela carne de criação.
— O senhor fala com uma linguagem meio nordestina: miunça...criação...
— O Norte de Minas é um pedaço do Nordeste implantado nos gerais de Minas.
— O Norte de Minas é formado por gerais é evidente. Mas tem alguma peculiaridade?
— Gerais, chapada, carrasco, e terra de primeira. Em algum lugar encontramos as chamas terra-mista. Não extensiva a todo Norte de Minas. Falo especificamente de Sete Passagens e Bonança. A fazenda Lambari por exemplo, é terra de cultura, de primeira, como dizemos por aqui. Terra preta, quase roxa. A Lama Preta também. Há um veio que pega de Juramento a Francisco Sá, só terra propícia para o cultivo e criação de gado. Tinha colonião de sumir de vista e esconder boi lá dentro.
— Não tem mais?
— As grandes estiagem devoram tudo...

Enquanto Dr. Dílson falava, Ravenala viajava na imaginação para a época em que seu avô mandava Onofre levar o gado para pastar no Gorutuba. Viu também os vaqueiros que caçavam onça, e em vez da fera, depararam-se com uma índia albina, trepada numa árvore.    Ravenala via a imagem de vaqueiros correndo atrás de boi; Pai Luiz  cuidando da moagem, Nhá Santa fazendo alfenim, e as mulheres raspando mandioca no aviamento. Tudo que ouvira de Corina sobre a fazenda Campo Grande, agora passava como um filme em sua mente. Um filme do qual não fora elenco, nem plateia, mas o tinha em  imagem viva nas histórias que Corina lhe contava. Ou...Talvez tenha participado, quando ainda na barriga da mãe, que ainda estava no ventre de mãe.  Que ainda morava em Campo Grande... Memória genética, talvez. Há no homem um registro do seu tempo de caverna, como um pontinho escuro, mil vezes menor do que a cabeça de um alfinete.

— Terminamos a entrevista — perguntou Dílson Júnior.
— Não, não! Estava só pensando como se faz alfenim!
— Não estamos em época de moagem.
— E farinhada, estamos?
— Farinhada e moagem se dão nos mesmos meses, de junho e julho. Algumas temporadas vão até agosto, mas devem ocorrer antes da chuva.
— O Senhor conheceu o vaqueiro Onofre?
— Não conhecer Onofre do Borá  é como não  desconhecer Manuelzão de Guimarães Rosa. Estive com Onofre numa caçada.  É sobre isso que vamos falar?
— A pauta é a cavalgada de Lambari ao Congonhas, cruzando Sete Passagens. Foi nessa cavalgada que se depararam com a onça?
— A onça  passou mais cedo. Só vimos o rastro.
Então, voltemos à cavalgada.
Cavalos e cavaleiros seguem a estrada em direção às Sete Passaagens, Gleuma, a outra metade da alma de Tunico Oliveira, reclama:
— Por que Do Carmo Lopes não veio?
No meio dos cavaleiros, a voz de Dílson ecoa.
— Gorda demais! Nem Possante carregaria tamanho fardo.
— Olhe o desprezo — diz Monique Loureiro — Maia é obeso e veio.
— Modo de falar, minha flor! A idade dela é peso.
Cadê Célia Maia? — Quis saber vaqueiro Xandão.
— Vem no coice de ‘Ligeirinho.’
— Se não tiver cuidado, o menino vai vender a ela peixe-leiteiro, e toda a ninhada  de avião ‘poedeiro.’ Ele é filho de Turíbio Medonho.
 
 O  assunto pareceu  esgotado e Ravenala sugeriu que direcionassem a conversa para a Bonança.
— Pensemos em Bonanza.
— O filme?
— A fazenda.
— Veja o filme, e transcreva no que couber, as imagens que encontrar nele. Era essa a Bonança de meu pai.
— Muito cowboy e tiroteio?
— Não, retire a parte dos caubóis e ponha vaqueiros, vaquejada, festa de apartação... Marcação do gado, castração dos machos, toque de sanfona, moda de viola, e tira gosto com testículos de boi.
— E a caça à onça?
— Na Bonança ou em Sete Passagens?
— Sobre Sete Passagens, tomei anotações com João Velho. Quero saber mais da caçada na  Bonança.
— Tinha um companheiro muito afoito.
 — Não podes dizer o nome dele?
— Era filho do dono de uma grande torrefação de café da cidade...
Então, entramos na mata: um escuro de dar medo em alma penada!
— isso na Bonança?
— Sim!
— Qual a posição do senhor em relação aos outros que entraram na mata?
— Eu ia atrás. Era o  último!
— Escolheste o pior posicionamento. A onça se mostra ao da frente, mas ataca é o derradeiro.
— Aquele que ia na frente, dizia-se perito em rastejar.  Gabava-se  de haver  recebido formação militar em treinamentos para guerra civil — estávamos vivendo a ditadura dos anos sessenta.
— Perito em rastejar, não garante segurança à tropa, na eventualidade de um ataque por animal selvagem. Qual dos caçadores  era expert em manusear arma de fogo?
— Nenhum.
Ravenala pôs a mão na boca.
— Pode rir. Da próxima vez, ponha a mão no corarão. O que vou revelar mais adiante é assustador.
— A onça apareceu?
— Surgiu um vulto em nossa frente. Não sei exatamente quem atirou primeiro. Todos atiramos e corremos...
Riu
— Mataram a onça?
— Só ficamos sabendo no outro dia.
— Conta logo!
— Estava morto.
— Morto? Era onça macho?
— Não! Um reprodutor. O melhor reprodutor que meu pai tinha no plantel.
— Acho que conheço essa história.

Dílson  fecho o cenho e se levantou da cadeira, suspendendo o cós da calça. Não gostava que ninguém duvidasse de suas verdades. Foi o que pareceu dizer com os gestos.

— Está encerrada a entrevista . E fez menção de se retirar da sala.
— Não se avexe, doutor! Ouvi tudo que precisava. Muito obrigada.
— ‘Não se avexe!’ Agora conversas como teu avô Generoso. Tu o conheceste?
— Nem minha mãe o conheceu bem. Quando ele morreu, ela era muito pequena.
— Quero fazer uma pergunta, se não te sentires ofendida.
— Fique à vontade!
— A morte de teu avô decorreu de acidente, ou assassinato? Desculpe! Morte, independente da causa, é sempre doloroso falar-se nela.
— Venâncio Dólmen foi preso, depois que o advogado de acusação conseguiu juntar como prova do crime, uma carta que  meu avô endereçara a um amigo, narrando um encontro recente com Dólmen.
— Venâncio Dólmen poderia ter sido preso por outros crimes...
— É verdade! Levantei também esses dados.

Também é verdade que é assim que se conta um conto.


 ***

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 Fernão Noronha Capelo