Tigresa

Ela acordou e se levantou tentando não fazer barulho, e não havia percebido que eu já estava desperto. Foi ao banheiro, escovou os dentes, voltou ao quarto e vestiu a calcinha que estava largada em uma cadeira. Depois abriu a mochila e tirou uma carteira de cigarros.

Fiquei observando aquela cena, fingindo ainda estar dormindo e aproveitando a espontaneidade do momento.

Ela acendeu um cigarro e o fumou na beirada da janela, observando o começo de manhã do lado de fora. Por algum motivo, sempre terminava me envolvendo com fumantes, por mais que eu mesmo não tenha o mínimo interesse pelo fumo. Talvez haja algo na fumaça, ou na silenciosa autodestruição do fumante, que faz com que eu me atraia quase que magneticamente por esse tipo de mulher.

Ela terminou o cigarro e o apagou na beirada da janela, e finalmente se deu conta que eu a estava observando. O que foi o suficiente para que ela voltasse a demonstrar a inquietude que eu tinha me acostumado a ver nela.

Imaginei que ela escondesse algo. Algum mistério, ou alguma faceta que não queria que vissem.

Tenho certeza que poucas pessoas já tenham chegado a essa conclusão, dada ao seu hábito de resumir suas relações ao superficial. E o engraçado é que quanto mais ela gostava de uma pessoa, menos de si ela demonstrava... menos se expunha.

Eu não sabia onde eu estava no largo espectro dos seus afetos e relações casuais, mas estava surpreso por ela ter dormido, e ainda mais por ter acordado do meu lado.

Ela se aproximou devagar e se sentou na beirada da cama, assoviando uma música que reconheci ser de Caetano Veloso.

- Que ressaca! Ainda estou tonta. – Disse abrindo um sorriso.

- Pelo tanto que você bebeu, não é de se espantar. – Respondi.

Ela se deitou ao meu lado, se agarrando a um travesseiro.

- Posso ficar aqui pra sempre? – Perguntou-me.

- Pode... Mas acho que vão sentir sua falta.

- Ah. Não quero voltar pro mundo real. Sem contar que vão me engolir viva quando eu chegar em casa.

- Vai ficar tudo bem.

- Vai sim. Mas apaga a luz por enquanto. Ainda tá cedo.

Eu me levantei, fechei as cortinas e apaguei a luz.

Fui até o banheiro, escovei os dentes e lavei o rosto. Quando voltei ao quarto, ela estava esparramada sobre a cama, ronronando como uma tigresa depois do almoço. Então me olhou e murmurou quase sem abrir os lábios.

- Vem cá.

Me deitei ao seu lado e nos beijamos preguiçosamente.

- Gosto dos seus olhos quando você me beija. - Disse-lhe

- Por quê?

- Porque eles dizem muito mais sobre você do que o que você fala.

Ela enrubesceu, sem graça, e voltou a me beijar.

- Você é maravilhoso...

- Não sei se posso concordar, mas gosto que você pense assim.

- Eu sei do que estou falado. Já vi alguns homens como você. Tão machucados e confusos que não conseguem ver o que tem do outro lado do espelho. Mas eu vejo. E sei que é muito mais fácil se esconder atrás das próprias feridas do que tentar cicatrizá-las.

Dessa vez fui eu que fiquei sem graça, sem conseguir juntar palavras para respondê-la.

Ela me puxou mais para perto de si e ficou passando as unhas levemente sobre minhas costas, causando-me um arrepio atrás do outro.

- Desisto de qualquer pretensão de te entender. – Disse-lhe, subitamente.

Ela sorriu, sem parecer surpresa por minha afirmação.

- Por que você diz isso?

- Simplesmente porque é difícil para mim, conciliar o que eu vejo e o que eu sinto quando se trata de você. Então é melhor nem pensar nisso.

- Isso é algo ruim?

- Não. Acho que estou me acostumando com a imprevisibilidade das coisas.

- Eu sou assim tão imprevisível?

- Olhando de perto, sim.

- Como assim?

- Às vezes é preciso de distanciamento pra se ganhar alguma perspectiva. Te entendo mais quando você está longe. E me perco quando você está do meu lado.

- Depois sou eu que sou a misteriosa, não é?

Resolvi não dizer mais nada, e me aninhei entre seus seios. Ela também não disse mais nada. Como se tivesse se contentado com as palavras já ditas.

Tinha muita coisa se passando em nossas cabeças que não podiam ser verbalizadas, e nos deixaríamos levar por nossos silêncios até que os nossos relógios nos dissessem que era hora de voltar para nossas realidades e para a cacofonia da cidade ao redor.

Fechei os olhos e me deixei levar pelo prazer dos arrepios que ela me causava.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 01/05/2018
Reeditado em 29/01/2022
Código do texto: T6323797
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.