Seus Olhos

Era uma tarde de julho. O ano eu já não me recordo bem (mas de que importa?). Lembro-me, contudo, com grande clareza e minudência, que o céu estava cinzento, acobertando todo o pôr-do-sol, e que o gélido ar soprava fortes e frios ventos. Cada brisa que passava, circundando o meu rosto – única parte descoberta – cortava-me a carne como navalha. Àquela hora eu voltava para casa, depois de um monótono (e por isso árduo) dia de trabalho. Como de costume, estava ali vagando pela estação, tão só fisicamente presente, já que esquecido em meus nebulosos pensamentos. A chegada do trem foi reconfortante, assegurando-me guarida do injurioso clima; sentado em um solitário vagão da locomotiva, eu pensava em você. Ia, então, com calma pelo transcurso da férrea linha e lentamente esfumaçava por onde passava, indo morosa, sem pressa a locomotiva - do jeito que a vida tem que ser vivida!

Olhando pela janela, enquanto as paisagens do mundo exterior atravessavam o meu olhar, formando uma magnífica pintura, digna do impressionismo de Monet, eu simultaneamente rememorava e revolvia imagens do passado – verdadeiros "frames" de um tempo pretérito que não volta mais. Em dado momento, cansou-me manter a cabeça encostada por tanto tempo no vidro da janela e, com o pescoço a doer, ajeitei-me melhor no banco, aninhando-me ainda mais na sobrecasaca que trazia entre os joelhos. Encurvado levemente, embalava me num contínuo e doce movimento, para frente e para trás, como única forma de repelir o frio que teimava entrar naquela monstruosidade de metal movida a carvão. Não resultou. Vesti a sobrecasaca.

Colocada a vestimenta, foi no singelo e despretensioso movimento, uma simples olhadela para o fundo oposto do vagão, que ali ressurgiu com violência um atenuado sentimento, guardado a sete chaves em meu peito. Como eu posso explicar em palavras o que senti? Digamos que foi como uma inundação de emoções, uma enxurrada de lembranças transpondo as barragens do meu coração. Vou além: o que eu via naquele instante era sobrenatural, chegava até mesmo a desafiar as leis da razão! Enfim, simplesmente não era possível.

Leitor, colega meu, antes de explicar a visão, o que será feito em momento oportuno, vale agora pontuar que, diante do transe em que me encontrava, socorri-me da única saída disponível (não, fiquem tranquilos, eu não pulei da janela!)... Gravemente tomei uma caneta do bolso, apanhando também o meu pequenino caderno de anotações, e passei a deitar naquelas cândidas páginas versos de mágoa e saudade, conjugados em estrofes que vertiam lágrimas. A despeito do transcurso de muito tempo, penso ter saído a minha criação mais ou menos assim:

No vagão de um trem

Eu (re) encontro você:

São os seus olhos

Estampados num estranho rosto

Que me é desconhecido...

Definitivamente... Os seus olhos!

"Com há de ser possível?"

Fito-os novamente

Pensando tê-los deixado

Esquecidos no passado,

Tão somente

Para ter reafirmado

O impensável... O censurável!

"Eu vejo você!"

Pensando bem, parando agora para pensar, creio que o poema que escrevi em nada se assemelha a este, seja em forma, métrica e o diabo a mais! Não importa. Vamos dar continuidade à história. A cena que tanto me chocava, avistada de relance, era uma mulher estranha (quero dizer, “desconhecida”), nunca antes vista, provavelmente com os seus trinta e poucos anos e de formosura ordinária. Ora, até aí não há nada de especial, certo? Certo... Entretanto, amigos, havia uma pequena, porém crucial, peculiaridade, que me fez os pelos dos braços ouriçar – foi um fervilhar de paixão reacendida: ela vestia os seus olhos! Sim, é isso mesmo, a mulher vestia os olhos "dela". Essa mulher-incógnita que ali estava, também sentada no vagão, tão aleatoriamente, enroupava-se e apossava-se do seu doce olhar. Como poderia Deus coser olhos idênticos em duas faces tão distintas?

Mudei de assento, movendo-me mais perto e defronte a ela (mas não tão perto, para não parecer bizarro, é claro). Tirei os óculos da maleta e deles me armei. Certifiquei: aquela mulher, ainda que não guardasse qualquer outra simetria, definitivamente tinha os mesmos, mesmíssimos olhos de um amor, uma paixão do passado, da qual "recentemente" me havia separado. De imediato retomei, então, ao penoso ofício da escrita, deixando a minha amargura naquelas páginas pautadas. Terminado o mais triste e negro dentre todos os poemas já escritos pelo homem (que, por favor, em nada parece com a inútil tentativa acima), eu naturalmente voltei a mirar aquela esfinge, a mulher misteriosa, e, para a minha angústia e meu descontentamento, não te vi mais nela... Estava agora com outros olhos, que não mais os seus. Meu amor, tu foges de mim outra vez. Por que?

Conto a vocês a verdade: não era a primeira vez que este infortúnio me acontecia. Já há meses eu vinha tropeçando em miragens, perdendo-me nestas contemplações de loucura. Via em outras pessoas os olhos da minha amada e nunca esquecida Camila, da minha esposa tão querida, que um trágico evento, anos atrás, fez-lhe falecida... Foi naquela fria e cinza tarde de julho, dentro do vagão, que finalmente tomei a mais plena e absoluta ciência. Não só carregava em mim um desolado coração, preenchido de luto e partido em milhares de pedaços (como um quebra-cabeça que nunca mais será montado), mas eu também tinha a mente insana, enferma, combalida, tomada de doença, infestada de demência. Rasguei as páginas daquele poema – e de muitos outros que carregava na maleta – e desci na última estação da linha férrea, prontamente me internando no sanatório ao pé da colina, local que venho fazendo de minha morada desde então. Ai! Se ao menos soubesse que não haveria serventia... Meu amor, os seus olhos ainda me assombram quando eu fecho os meus!

Sanatório Naval de Nova Friburgo – RJ

05 de setembro de 1942

Necrófago
Enviado por Necrófago em 25/04/2018
Reeditado em 11/07/2019
Código do texto: T6318981
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