A família do cão polarizado
Aquela família o adotara de um abrigo de animais. O cão abandonado era novo, mas não um filhote. Em pouco tempo mostrou alguns truques engraçados, provavelmente aprendidos com o antigo dono.
Buscava bolinhas e outros objetos leves atirados longe. Trazia e botava aos pés de quem lançou ansioso para que os jogasse novamente. Também rosnava muito quando alguém dizia Corinthians, por sorte ninguém da casa torcia para o time paulista - coisa do antigo dono.
Fazia outras palhaçadas como dar pulos e cambalhotas conforme identificava os sinais de seus novos donos. Sentava, deitava, rolava e pedia bênção aos seus donos sempre que os via ou sentia chegar em casa.
Era aquele mesmo ritual sempre, os donos chegava próximos da porta e não podiam entrar enquanto não apertassem a pata insistentemente erguida em direção aos donos.
O cão era um verdadeiro lorde, embora não aparentasse pertencer a nenhuma raça conhecida. O pedigree era desconhecido, porém a inteligência era inegável. O cão gostava de assistir as aulas particulares que o filho mais velho tinha em casa, ministradas por uma professora de matemática especialmente contratada para este fim.
Depois de um mês e meio, o cão havia aprendido álgebra mais rápido que o garoto, que ainda continuava manchando de vermelho o boletim escolar. Mas como souberam disto? Não foi tão difícil.
Arthur, o nome do filho mais velho, repetia em voz alta os cálculos errados que fizera para a professora, para que esta corrigisse. O cão ouvia, chorava e latia insistentemente a cada burrice cometida pelo Arthurzinho. E nas raras vezes em que acertava, o cão se empolgava e latia em festa.
A professora e depois os demais membros daquela família começaram a perceber o estranho comportamento do cachorro. Mas como convencerem os demais, vizinhos e amigos, sem se passar por idiotas? Preferiram guardar para si o fato pouco relevante, ainda que muito interessante.
Com o talento em matemática desperdiçado, pois quem levaria a sério um cão matemático, o pobre animal se deprimiu um pouco. As aulas particulares estavam suspensas pois não foram suficientes para fazer Arthur aprender matemática.
O cão começou a acompanhar os noticiários. Assistia com gosto os noticiários. E em pouco tempo havia se tornado um defensor do Estado Mínimo e da prisão de Lula na segunda instância. Latia enraivecido quanto via as bandeiras vermelhas do MST, e chorava de alegria ao ver o novo recorde de safra de soja no Brasil.
O cão era um defensor implacável das metas inflacionárias e do cumprimento do superavit primário, o que o desapontou profundamente com o atual governo - que parecia ter peito para enfrentar as reações às reformas.
O noticiário não mudava muito e o cão começou a acompanhar programas evangélicos pelo TV. O animal parecia ter se convertido. Era contra o aborto, latia diante de cenas de homossexualidade nas novelas e contra o ensino de ideologia de gênero nas escolas.
Chegou a avançar em um professor de sociologia, conhecido na vizinhança, quando voltava de seu trabalho.
O cão parecia apoiar certo candidato, mas como não tenho certeza prefiro não dizer qual deles. Detestava bandidos, brincava com policiais que patrulhavam as ruas e latia esbravejado contra negros, travestis e esquerdistas.
Incomodava nos churrascos familiares aqueles que defendiam o PT, que falavam de racismo, desigualdades sociais e que nem tudo se resumia a mercado. Não dava sossego, avançava e criava outros constrangimentos diante das visitas. Era um cão polarizado, completamente polarizado.
A família começou a se preocupar com a situação, mas só tomou uma atitude mesmo quando o cão não permitia mais conversas banais a mesa. O cão só se aquietava quando ouvia sobre política, praguejar contra a esquerda, pedir pena de morte para bandidos, redução da maioridade penal, Estado Mínimo e fim das regalias dos funcionários públicos.
Estava cansativo. O que no início era um sinal de inteligência e personalidade do cão havia se tornado um inferno para o convívio daquela família. Tomaram então uma medida drástica: abandonaram o cão na avenida paulista em um dia de domingo.
Com profundo pesar o cão se juntou pouco a pouco a outros cães abandonados. Se alimentavam do que as ruas lhe ofereciam, restos, migalhas e lavagem. Nutridos com a miséria do banquete, os cães tomaram as ruas, se multiplicaram.
Hoje estes cães trazem para as ruas as vozes obscuras dos becos envergonhados. A leviandade, o orgulho imerecido, o preconceito, a ignorância empoderada e pedante, o medo de dividir, a vergonha de ser igual...
Quem admitia gostar daquela matilha numerosa, suja e antipática? Mas quem tinha moral para dizer que não se sentia representada por aquelas figuras? Eles sujavam as ruas, avançavam em muitas pessoas e bagunçavam as coisas, mas havia um lugar para eles e para o que faziam.
E o cotidiano seguia, dentro do possível, na sua normalidade quieta e incerta quanto ao futuro. Para onde ir ou onde chegar? Perguntas vazias ou difíceis de se responder no momento - segue-se que até a mesmo a rotina tem sido incerta neste tempos.