Adilson divagava traquinagens da meninice: o banho guardado na bacia do açude construído com toras de aroeira, por mãos escravas, e as matas ribeirinhas do rio Juramento, aonde se escondia com Jerônimo, para ver as meninas se banhando. Elas nadavam vestidas, ainda assim, dava para ver a protuberância rosada  como  pequenos caroços de pitomba, despontados na roupa molhada,  promessa de que na próxima estação chuvosa, lindos seios estariam quase formados, e nunca mais seriam vistos por eles.

— Em qual planeta está teu pensamento, Adilson? Volta pra Terra.
—Apenas refletindo, exercitando a ciência.
— Sobre o quê?
— Sobre um fenômeno que ocorre na puberdade com os meninos. Eles desenvolvem “peitinhos” decorrentes da mudança nos níveis hormonais. E falam com voz de taboca rachada. É muito engraçado. Vez por outra, uma mãe aparece no consultório. Assustada...
— Mas você é ginecologista obstetra.
— A situação é colocada para pedir a indicação de um especialista.
— Vamos mudar de assunto. Sou pedagoga, não médica.
— Desculpe-me, minha Flor.
 Distraidamente, Adilson comenta aquilo que antes estava apenas em suas lembranças.
— João Velho é homem de sorte...
— O quê?
— Euzébia era a menina mais bonita que as águas do Saracura pariram nas últimas décadas.
— Era? Faz quanto tempo que conheces Euzébia
— Desde menina. Nunca  descobri se ela tem olhos verdes ou amarelos.
— Os olhos refletem a cor das vestes.
Fez um muxoxo e continuou.
— Não creio que João Velho seja um homem de muita sorte.
— Ciúme, minha rainha?
Raul Soares não gerou, nem as águas do Matipó conceberam e jamais conceberão uma filha que se assemelhe a ti, em beleza, sabedoria e santidade.
Adilson  guardou para si a lembrança do dia em que dissera a Euzébia: “ Boa sorte com o vaqueiro.”  Naquele tempo, o coração  doeu. Agora dói mais não.
— Não queira ser engraçado, Adilson! Falo dos homens que morreram porque  se apaixonaram por  Euzébia. Dois, que eu saiba.
— Nunca soube de nenhuma  viuvez dela. Duas vezes viúva?
— Não chegavam a coabitar. Morriam na mesma noite do casamento.
— Então o casamento não valeu. Nenhum dos dois... Isso parece maldição! Como João Velho saiu-se com vida?
— Puseram-se  em oração, durante  os primeiros três dias de casados, sem coabitar.
— Até parece que conviveste com eles. Sabes muito de João Velho e Euzébia.
— Muita gente sabe da história de amor que eles viveram.
— Não vivem mais?
— Não sei! Não convivo com eles!
— Disso eu sei.
E chamou Jerônimo que veio  trazendo a conta.
— Mais uma  farofa de tatu, por favor!
— Haverá um dia em que será proibido matar animais selvagens.
— Será,  dona Edineia?
— Penso que Deus criou animais domésticos. Os que fugiram da convivência com o homem é que se tornaram selvagens — Arrematou Adilson.
— Também deve ter sido do mesmo modo com os humanos: os que fugiram da presença de Deus se tornaram selvagens — comentou a mulher do doutor.
— É  por isso que existe  índio, dona Edineia?
— Não! É por isso que existem pecadores!
— Diria que os que se isolam da convivência com o semelhante, tornam-se selvagens — interveio Adilson.
— Meu lindo! Estamos examinando a mesma matéria, sob a luz de duas ciências diferentes.
Jerônimo não entendeu.
— Com licença! Tem freguês me esperando no balcão!
— Está formando pra chover. Traga a conta!
— Pernoita hoje na fazenda Lambari, doutor?
— Sim, sim! Diga logo quando lhe devo. Vem chuva forte. Não quero ficar atolado.
— Deve nada não. O senhor não me deve um vintém — disse Jerônimo, tangendo um cachorro que comia migalhas debaixo da mesa.
— Vai chover — disse Edineia.
— Sei. O tempo está formado para chuva.
— Vai chover porque Jerônimo dispensou o pagamento da conta. Foi isso que eu quis dizer.
***
Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."