SEU LUÍS, EL HOMBRE
Seu Luís Anderzetti tinha para mais de noventa e cinco anos. Fora escravo na infância e adolescência. De tempos em tempos, passava em nossa casa, na fazenda onde moramos por vários anos. Vinha sempre montado, tesito, no seu belo alazão. Lembro bem da primeira vez em que o vimos. Meu pai já o conhecia de outra ocasião. Ele pediu licença para bolear a perna. Meu pai concedeu e perguntou se ele já almoçara.
- Não, mas o amigo não precisa se preocupar.
- Claro que me preocupo - disse papai. Nós já comemos, mas ainda se pode fazer um cabo-de-relho.
- Se o amigo insiste, aceito - respondeu seu Luís.
Mamãe estava por perto, ouviu a conversa e correu para dentro. Juntou as sobras de feijão e arroz, quebrou um ovo, misturou tudo e deitou numa panela de ferro, mexendo depressa. Tão logo ficou pronta a mistura, acrescentou um pouco de azeite de oliva por cima e serviu num prato fundo, entregando-o a seu Luís, que dispensou garfo e faca e pediu apenas uma colher.
Perguntei, reservadamente, a meu pai, quem era aquele homem. Mas ele ouviu e se antecipou:
- Meu nome é Luís Anderzetti. Na minha meninice e mocidade, morei nesta fazenda.
Apontou a sede da fazenda, onde havia muitas árvores frondosas, como angicos e carvalhos - e muitos cinamomos, e acrescentou:
- Apanhei muito, amarrado naqueles cinamão!
E eu, abelhudo, e já me sentindo íntimo:
- O senhor disse que seu sobrenome é Anderzetti. É um nome italiano, certo?
- Certo - respondeu ele.
- Eu ainda não conhecia um italiano negro!
Minha mãe saltou sobre mim e puxou-me para outro cômodo da casa, a me censurar.
- Isso é pergunta que um fedelho de dez anos faça a um senhor nonagenário? E ainda precisa lembrar-lhe a cor?
O negro velho ouviu e gritou de onde estava:
- Deixe o guri, minha senhora! Gosto de piá curioso. E não tenho nenhum problema com minha cor. Meu sobrenome eu devo à bondade de um colono italiano, que me comprou, registrou como filho e me alforriou, bem antes de oitenta e oito! E quando morreu, deixou-me algumas posses.
Como eu disse no começo, de tempos em tempos seu Luís - que parecia eterno - passava pela fazenda e, sempre que o fazia, visitava nossa casa. Depois de sua quarta ou quinta passagem por lá, mudamos para a cidade e nunca mais tivemos notícias dele.
Dia desses, relendo mais uma vez Cien años de soledad, de García Márquez, seu personagem Francisco, el Hombre me lembrou seu Luís e suas conversas soltas e buenachas! Isso, mais a pergunta de uma amiga na rede social, para ver quem sabia o que é um cabo-de-relho, me fez escrever este conto.