A Senhora da casa

Era o mesmo ritual diário. Finda a aula, saíamos com nossas bicicletas, deixando pra trás as casas tranquilas da Nova Barra em direção à Boa Vista, região rural da Ventania. Denílson era sempre muito prosa; Talmo também; eu, mais comedido, reservado. Era roceiro da roça; eles, roceiros urbanizados. Sutil diferença, marcante distância.

Após a ponte, Denílson virava à esquerda. Era a hora do até-manhã. O morro a pique nos cansava, de silêncio e suor. Tomada a rodovia, logo adiante, vinha a encruzilhada para Estrada da Laje. Era de economizar caminho, embora um tanto deserta. Quieta demais para se passar sozinho. Em muita coisa ruim pensei quando por ali passei. Em horas mais extremas, de chuva armando e céu pesado, eu rezava. Cada ave-maria, trinta metros. Andando bem, quarenta.

Por vezes, à noite, tive inícios de pesadelo com aquelas curvas escuras, aquelas matas com vento sibilante, aqueles vales cavados por escravos, dos quais ainda se podia ouvir os lamentos. Quando chovia era mais amedrontadora. O de que mais tinha medo era o cantar da coruja no passar da tarde para a noite. “Sorte! Só mais um sonho”. Suspiro. Alívio.

Ocasionalmente íamos de dois. A presença de alguém basta, em qualquer circunstância, para que o medo abrande. Medo é um dos filhos da solidão. Sua irmã, a angústia.

A casa. À direita de quem desce e à esquerda de quem sobe. Na ida para a aula, logo após o sítio do Ganchinho. Passado o córrego, subíamos a estrada de cascalho e poeira. A casa. Abandonada. Fechada. Mas os vidros... Quem, menino, não os gostou de quebrar? Mais se proibido. A casa.

Duas pedras em cada mão. Eu não queria. Mas queria. Não devia. Mas podia. Conflito. Tensão. Hora da decisão fatal. Talmo, mais resolvido, lançava a primeira, a segunda. Tímido, também eu. Prazer intenso. Satisfação. Bicicleta e corrida. Ninguém nos vira. Realizados da aventura. Felizes. Vencedores.

Eu me reconhecia naquelas situações? Não sei dizer. Formei de mim uma imagem na qual não caberia transgressões infantis? Também não posso afirmar. Sim. Não. O que a gente sabe de si? Voltamos ao passado quando rememoramos? Ou jogamos lá, no remoto do tempo, a luz da lanterna do presente? Consigo dizer mesmo o que sentia ou apenas digo o que hoje acho que era? Coisas do insondável. Ou não?

Por semanas seguimos a aventura. Eu era livre, um capitão do cascalho como os da areia. A leitura de Jorge Amado na aula de literatura me dava razão? Ora se não. Eu me identificava. Sentia uma espécie de apoio, de chancela. Menino tem mais é que fazer arte. E não é daí que nasce, via de regra, a Arte? Pois sim. Eu pensava. Justificava meu argumento. Era senhor de mim. Ou não era? E se fosse apenas imitação dele, do Talmo, quem de fato era livre? E aí eu não poderia ser, assim, livre por empréstimo? O frio na barriga. Nova edição da aventura. Barulho de cascalho. Risadas e a estrada. Longa estrada. Campo aberto de sonhos e ilusões, por onde passa carregado quem nasce e, no igual, quem morre.

Mas eis que um dia ela apareceu. A dona. De idade. Grisalhos cabelos, saias longas. Parecendo viúva. Cara de quem criou filhos vários, só com a enxada e a panela. Deu-nos lição, admoestou-nos. Com xingamentos. Somava em seu aspecto severo todas as correções que até ali eu havia recebido. Por enquanto, apenas a vergonha. Mas – ai! – os nomes dos nossos pais! O medo me corroeu: ela nos conhecia! Bicicleta e pedaladas mais fortes. Corrida de loucos. O e-agora ocupou meus pensamentos por toda a aula, por toda a noite, por toda a vida.

Três anos passei, no dizer de Seo João, de orelha com a pulga atrás. O será-que-ela-vai-contar-pro-meu-pai me estarrecia a cada vez que passava na estrada com a casa me apontando o erro imperdoável. Às vezes, tinha a impressão de vê-la de novo. A Senhora. Mais brava, mais forte, com uma correia-de-bater-em-menino na mão.

Não apareceu de novo. Nunca. Teria sido uma assombração? Não mais peguei aquela estrada. Juventude veio. A mudança. A cidade. Novos medos se juntaram aos antigos. Ou os fizeram crescer? E que diferença faz? No fim é sempre medo.

Se hoje preciso fosse, teria como pagar os vidros. Sem problema. Não são tão caros como pensei naquela tarde de repreensão. Pai nem precisaria saber. Melhor. Mas ela... Outra noite me visitou em sonho. Acordei ciente de que ainda a temo. Tanto que não é o imperativo ético o que me fez-faz-fará não quebrar mais vidros de casa abandonada. É o medo dela. A Senhora da casa...

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 20/04/2018
Reeditado em 20/04/2018
Código do texto: T6314157
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