MAIS OU MENOS

Mais ou menos (EXERCÍCIO TEATRAL)

(Um casal está numa sala. Há uma mesa e duas cadeiras. A mulher está olhando o vazio. O homem entra portando uma fotografia)

HOMEM: Então é isso?

MULHER: É isso...

HOMEM: Estás certa?

MULHER: Certa não...

HOMEM: Porém decidida.

MULHER: É o melhor a ser feito...

(Silêncio. O homem coloca a foto no meio da mesa)

MULHER: Não quero ver!

HOMEM: E por que não?

MULHER: Melhor seria perguntar por que sim...

HOMEM: Tens razão... (pega a foto de novo. Olha atentamente) devo rasga-la então?

MULHER: Se isso adiantasse de algo... no fim das contas é mais uma foto. Não é o que fica...

HOMEM: E o que fica então?

MULHER: E eu sei lá? Como posso saber? Ora, para de me aporrinhar com tuas perguntas. Vamos logo com isso!

(Ambos se levantam e se olham longamente. A mulher está com a respiração forte)

MULHER: De quem é a culpa?

HOMEM: Tu sabes que não é de ninguém...

MULHER: E por que isso agora? Por que com a gente?

HOMEM: Estamos a fazer perguntas um ao outro de novo... a dor cutucada é a dor doída sempre. Tu sabes...

MULHER: Eu sei... (pausa). Ah, dá cá esta foto!

(Pega a foto e olha demoradamente)

MULHER: É tão... nós! Tão... leve. Como algo denso poderia vir de algo tão leve? Tão fugidio... essas imagens. Esse momento eternizado em um quadrado fixo e impresso. Esse sorriso... essas cores que optamos por ocultar no preto e branco. Tivesse cores talvez fosse melhor... Não... é só uma foto! É só uma MALDITA FOTO! Mas tão leve!

HOMEM: Ei, Ei! Não de novo! Vamos lá, me passa a foto de novo!

MULHER: Lembro desses gestos, das intensões deles. Queríamos retratar algo. Personificar algo! O que era?

HOMEM: Por favor, não prolonguemos isso... vamos guardar essa foto logo! (se aproxima com cuidado)

Mulher (grita): Sai daqui! Sai! Não vês que isso é a gente! Ou melhor, era a gente?

HOMEM: Convém aos cadáveres serem sepultados, vamos logo com isso...

MULHER: Ah... então já tens as velas e as flores? Lembraste de trazer o vigário, de chamar a toda a comunidade civil, as mulheres respeitáveis? Avisaste a imprensa? Como podes... porco... como podes!

HOMEM: É apenas uma foto... era pra ser ou uma lembrança ou uma despedida. Não uma catarse. Era pra ser apenas um símbolo de algo que deixamos para trás! Lembra-te, estás decidida... lembra-te, é o melhor a se fazer. Não façamos do enterro espetáculo público, o sono privado é o melhor sono.

MULHER: Como podemos chamar de sono o que desperta em nós a fibra que nos inflama? Como ousas chamar de sono o que nos levanta e nos atormenta? Olha! Olha pra mim!!!! Chamas isso de sono! (começa a rodear o homem) Hem! Chamas isso de torpor? De luto? De alucinação? Fala! (Homem aumenta a respiração. Mulher continua a provocar) Fala, infeliz! Não és tu quem sempre tem a resposta pra tudo? Fala! (grito longo, empurra o homem e este cai).

(Ambos permanecem se encarando por um longo tempo. A mulher solta a fotografia)

MULHER: Tens razão. Devíamos ter sepultado logo. Agora o fedor da carniça nos impregna. Vai, pega teu cadáver e enterra junto com a leveza desta foto... (senta-se na cadeira cansada. O homem se levanta e pega foto. Olha-a de novo)

HOMEM: Mais uma vez, não foi nossa culpa. Podemos ter naufragado junto, é verdade, mas não foi por nós, entendes? Talvez seja a chance de ressurgirmos. De dar a volta por cima... guardar isto aqui e fazermos algo novo.

MULHER: Tudo que morre um dia foi novo, todas as coisas envelhecem, até as esperanças.

HOMEM: Às vezes ela é a única coisa que temos... às vezes mais, às vezes menos.

MULHER: No fim, o que temos é um mais ou menos. E uma foto!

HOMEM: Agora não mais! (Pega o isqueiro e queima a foto. A mulher olha assustado). Agora não mais! Agora só temos o subir ou afundar de vez. Só temos um ao outro, ou a possibilidade de um ao outro. Só nos resta isso.

MULHER (Olhando para o balde): Cinzas?

HOMEM: Cinzas!

MULHER: Cinzas... (pega o balde e passa as cinzas no corpo). São só cinzas, mas ainda queimam. Quando esfriarem, não serão mais nada: só pó. Cinzas...

HOMEM (Retirando a mulher com força e gritando): Cinzas! São só cinzas! Cinzas, entendeu? Não há mais defunto, não há mais flores, não há mais vela! Só cinzas... (Solta a mulher). Vamos terminar logo com isso!

(a mulher permanece no chão pensativa)

HOMEM: Vamos!

(a mulher se levanta firme, resoluta)

MULHER: Vamos... as cinzas já esfriaram.

(Dão as mãos e saem. Ao fundo se escuta o barulho de uma porta batendo)

Fim.