1044-A MORTE DO BURRO VELHO
Pequena cidade do interior brasileiro, com passado de tradição e presente de marasmo. Dias e dias de pasmaceira, os habitantes idosos passam as manhãs e as tardes senados nos bancos do jardim, em conversas saudosistas e melancólicas. Os jovens abandonam a cidade assim que podem, pois poucas são as oportunidades de sobrevivência. Não há empregos nem negócios novos.
Ah! Existe a política, sim, que divide as opiniões dos habitantes. A política está equacionada assim: de um lado, o velho coronel Rubião arrebanhando os votos dos eleitores conservadores. Eleito e reeleito por diversos mandatos faz da prefeitura uma sinecura vitalícia. Quase nunca vai a prefeitura, deixa tudo por conta dos empregados, que, acostumados há anos na mesma rotina, não carecem de fiscalização.
Alguns poucos adversários são liderados pelo pároco local, o que também não faz diferença. Uteis apenas para animar as campanhas e estabelecer que existe o “partido dos contras”.
O centro, a praça, não é uma praça propriamente dita, mas um espaço retangular, que ocupa uma área equivalente a uns três quarteirões. Cercada por calçada de todos os lados, com bancos de granitos, confortáveis, pois têm encosto e suportes para braços.
Todos os bancos virados para a rua, portanto, de costas para o “jardim”, que nada mais é do que um pasto de capim rasteiro com algumas árvores de cerrado, que nasceram espontaneamente e que proporcionam sombras agradáveis sobre os bancos.
Em uma extremidade, fora da praça, está a igreja católica. Dou outro lado, a prefeitura. Como dois castelos de nobres oponentes.
O canteiro extenso e plano, não precisa ser capinado, pois o é diariamente pelos bodes do seu Vilácio, o presidente da câmara de vereadores. Uma vintena ou quase de animais que pastam serenamente naquele vergel.
Nos últimos tempos, apareceu outro animal a fazer companhia aos bodes: um burro velho, de dentadura falha e andar capenga, já impróprio para qualquer serviço.
Ninguém sabia de quem era o burro. Ninguém queria sequer saber a origem do burro. Apareceu assim, sem origem, e no “jardim” ficou pastando placidamente. Não se misturava com os bodes. Era ele numa extremidade do campinho e os bodes no outro. O pasto era suficiente para todos.
Como era bem velho, foi perdendo a energia, foi cada vez mais suportando as mordidas das moscas, na preguiça ou impossibilidade de balançara a cada, que já nem forças tinha para tanto.
Até que um dia morreu. E bateu as botas defronte à igreja. Morreu e ali ficou sob o sol quente. Um, dois, três dias. Ninguém assumiu o encargo de remover o burro e enterrá-lo.
Começou a cheirar mal. Os fiéis não aguentavam mais assistir as missas. Todo mundo reclamava.
Uma comissão de moradores ao redor da praça foi até o vigário.
— Padre, é preciso que alguém vá pedir ao prefeito pra levar esse burro embora. Já tá apodrecendo.
—Meus irmãos, reconheço que a situação é grave. Merece atenção. Mas, como vocês sabem, eu sou do partido contra o prefeito, até fiz sermões na igreja contra ele. Com que cara vocês acham que eu vou à prefeitura pedir alguma coisa pro coronel?
—Mas, padre...
—O que posso prometer é o seguinte: Se por acaso eu encontrar o coronel por aí, falo com ele sobre o burro morto.
A “comissão” não ficou muito satisfeita, mas... fazer o quê?
—Então vamos esperar.
Mas o burro fedia mais a cada dia que passava.
Não demorou muito, o padre e o prefeito se toparam. O padre aproveitou para cumprir a promessa aos seus fiéis.
— Boa tarde, coronel Rubião! — Colocou no cumprimento uma efusão que não sentia.
— Boa tarde, seu vigário — Respondeu o prefeito, ensaiando um sorriso que morreu por baixo do enorme bigode.
— Coronel, precisava mesmo falar com o senhor.
— Se for coisa da prefeitura, me espere lá que já tou indo.
— Não, a gente pode falar aqui mesmo. Tá sentindo esse cheiro de carniça?
— Tou, seu vigário.
—Pois é, um burro morreu há uns quinze dias e tá estendido na praça, lá do outro lado, bem em frente da igreja. O senhor, como prefeito, deve...
O coronel interrompeu a reclamação do vigário.
— O senhor me desculpe, padre, mas quem deve cuidar dos mortos é a igreja. E o senhor, como vigário, é quem deve cuidar disso.
O padre responde, em tom de gozação:
— Não, senhor prefeito. Minha obrigação, como vigário, é em primeiro lugar avisar os familiares do falecido.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 22 de fevereiro de 2018.
CONTO # 1044 da SÉRIE INFINITAS HISTÓRIAS.