A caricia necessária

Natal F Cardoso

Sempre corria para o riacho quando papai ralhava comigo. Éramos uma família

numerosa e eu era o mais novo dos filhos. Papai não me compreendia, o que

era como facas me trespassando. Corria para o rio e ali ficava, naquele

silencio da floresta, molhando os pés e ouvindo a água descendo pelas pedras

e cantando uma sinfonia de borbulho e estalidos. Lá longe, ouvia mamãe

recriminando papai por não me deixar em paz. Eles não ligavam se eu sumia

pois fomos criados soltos e sem muito freios. Éramos livres, a não ser

quando tínhamos que trabalhar na lavoura . Numa dessas noites de lua e de

calor sufocante, foi que ela surgiu, pequenina, vinha descendo o rio, eu ali

sentado, notei algo brilhante rolando por entre os seixos e as pedras lisas

de limo. Fazia um barulho tipo trec - trec quando sua couraça batia de

encontro as pedras. Veio rolando e parou ao meu lado. Era um esfera de

vidro; em baixo, um suporte negro parecia ser de plástico. Dentro havia uma

mão, presa nessa base, e, apoiada nela, havia um menininho negro. A imensa

mão servia de base para esse menininho se apoiar, era como se ela o

afagasse. Ele se sentia ali protegido, sua expressão era de paz e os dois se

entregavam a um apoio mútuo. Fiquei a observar. Uma vontade imensa se

apossou de mim. No começo, senti vontade de ser aquele menino. Depois, me

veio uma inveja. Como podia, um negrinho daquele sendo afagado por aquela

mãozinha rosa e gentil ? E que expressão angelical era aquela, naquele rosto

? Joguei, com raiva ou inveja, não sei. Ela foi cair longe, quicando,

batendo aqui e ali. Escutei o ploft e me virei. Me arrependi e

corri. Tentando chegar até ela, desesperado, com medo de que estivesse

estilhaçada, cai, ralei os joelhos mas não senti . Ela não podia se quebrar.

Cheguei perto e não resisti quando vi cacos por toda a parte. Gritei : não,

não. Procurei pelo menino e pela mão. Só encontrei os pedaços da esfera.

Depois de procurar por algum tempo, sentei, desanimado e derrotado, nas

pedras. Como fui burro. Talvez papai tenha razão em me perseguir. Como pude

quebrar uma coisa tão bela ? Chorava copiosamente. Nada me alegrava, nem a

beleza do lugar. Olhei, mais uma vez, para dentro do rio e lá, sob meus pés,

é, lá embaixo, no fundo da água, a mão estava a afagar o negrinho .Chorando,

peguei aquilo com o maior cuidado, quase como que pedindo desculpas.

Acariciava e beijava, chorando. Tive que me render. A cena era muito meiga

e, olhando melhor, o negrinho era bonito. Até combinava melhor, a cor escura

com a cor rosada da mão. Olhei em volta e procurei um local onde pudesse

deixá-los. Achei uma pequena caverna onde poderiam ficar e sempre que

estivesse triste, viria até eles, me alegraria com aquela imensa ternura.

Nos meus sonhos, eu sempre estaria ali, sendo acariciado pela bondosa mão, e

isso sempre me daria força para dar mais um passo em minha vida. Não sei o

porquê , mas, quando estou triste, penso que sempre vai existir alguém para me dar uma caricia necessária.

Natal Cardoso
Enviado por Natal Cardoso em 17/04/2018
Código do texto: T6311249
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