REVOLUÇÃO

O país demolido florescerá, é a Revolução em marcha. Eu projeto o real à lápis, a partir dos destroços. Dou meu braço por um clichê porque quase tudo está perdido. Engendro sentidos no campo de visão para perceber mais uma vez a força do homem coletivo. Estou determinado, vou aderir ao Movimento.

Na minha frente está a Praça dos Poderes, me esquivo da presença encarnada e aflita dos que gemem de medo atrás de mim. Saio para a rua e vejo barreiras erguidas, e outro muro e outro muro e outro muro. A utopia é essa grande distopia, é a máscara grudada na cara desfigurada da multidão. Eu me entrelaço, cantamos antigo refrão. Minha sombra é a sombra de homens e mulheres e crianças e velhos que levam uma rosa numa das mãos e na outra, segura firme, a mão de quem vai ao lado.

Somos operários cansados de levar material de construção de um lado para outro dentro de nossas cabeças. Cada um que vai à marcha tem nos olhos a reconstrução do país. Mão à obra.

Num segundo levanto alicerces. Diante dos meus olhos, cem anos de solidão despencam do olho do furacão. O rosto de um menino envelhece quando a mãe o chama pelo nome.

Eu cerco todo o perímetro com canteiros, margeio o quarteirão com um jardim. Sobre os alicerces ergo paredes monumentais vazadas por amplas vidraças de cristais que deixam os ambientes iluminados. Em cada lavabo de cada banheiro eu pinto reflexos colorido que escapam da rua para cintilar em minúsculos nichos esquecidos. Nada escapa à luz poente.

Desenterro a fundação das paredes de todas as casas, tudo estava à mais de dois metros em valas socadas à ferro e blocos de pedra. Dessas valas retirei antes um pedaço de sonho, com ele aplaino canteiros de cravos e jardins de margaridas.

O trabalho preenche um vazio enorme no meu peito, mas ainda não tenho nome para o que sinto. A revolução vem em ondas, parte do coração daqueles que estão nas ruas.

Não vou me juntar aos políticos.

Para os políticos que têm gosto refinado por dinheiro, as fachadas explodem com a força destino. São déspotas esclarecidos e idiotas oportunistas que apreciam o rococó. Meu estilo é dórico, de berço clássico renascentista, biscoito fino para as massas. Os políticos terão que morar na rua. Os políticos dividirão o estilo dessa descrição alongada com a plebe porque isso é se chama Revolução.

Haverá um momento de paz depois da guerra, por isso faço surgir salões de festas debaixo dos viadutos. Festejaremos no fim do dia, cansados de cantar a paz, sôfregos de fazer amor.

Sei que a quantidade de peroba e jacarandá que vou usando para revelar a transformação que ocorre desagradará os ambientalistas de plantão. Sei disso, mas vivo há cinquenta anos e sei que precisamos da companhia da madeira dentro de casa. No meu devaneio sinto cheiro de árvore. Eu nunca mais tinha visto homens-árvore nas ruas. Quando eles se aproximam, sua estatura é angelical e triste.

Ergo o mais alto que posso esta construção.

A cidade se impõe nua.

Naquele telhado alguém agita uma bandeira contra o horizonte.

A planta baixa das moradias populares é desenho simples. Todas as moradias serão, depois da Revolução, simples e populares como um sorriso. Um sorriso para os modernos que têm a pressa elétrica dos condutores alucinados de energia. Um gosto peculiar por antiguidade inunda minha alma como se eu descobrisse novo encantamento pela cidade. A Revolução possível ainda é o amor.

Revigorado, ergo nos ombros lajens de concreto. Suporto colunas e vigas que oferecem dois metros de sombra para a multidão.

Já é tarde, talvez eu devesse voltar para casa. Talvez devesse desistir da evolução. Mas se o fizer agora, ficarei com o que já tenho - uma vaga lembrança do que seja o movimento. Isso não é o que busco. E o que busco? Eu que ainda espero muito da vida? Anseio saber se realmente amei um dia.

O amor abre as portas internas da dúvida. Diante das portas de ferro adornadas de cristal ele se detém. O amor é o reflexo caleidoscópico do sol numa face esquecida. Sua feição é agradável. Coloquei uma faixa em cada esquina para que o amor atravesse em segurança. Não reconheço ninguém, seria possível esquecer a força que tem o amor?

Nesse momento a cidade parece levitar de suas estruturas.

Eu estou demolido.

A Praça Poderes entardece, afundo na melancolia.

Ergo mais uma vez meu braço, traço um poste e nele acendo uma lâmpada cansada. Agora subo escadas inventadas, tudo é espaço em branco a ser escrito. Isto é revolucionário.

Sinto o peso da minha origem sob os meus pés, onde ficou Franca nesse esboço? Minha cidade natal está nos ombros de outros operários. Penso o absurdo que é o amor, uma revolução leva várias demãos de tinta.

Eu me encontrei na multidão. Não resisti ao apelo e beijei uma palavra de ordem na boca de um estranho que passava.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 14/04/2018
Código do texto: T6308358
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