A volta
A Volta
A casa continuava como antigamente: a fachada simples pintada de branco, janelas pintadas de azul. Acima dos degraus, a pequena varanda, cujo parapeito dava para a rua. Agora uma grade recobria o parapeito da varanda e as janelas - nesses tempos modernos era necessário esse cuidado para manter a segurança!
Na coluna, junto à porta, a mesma placa de bronze: Fabricio Meirelles – Psiquiatria/Psicoterapia
Parada diante da casa relutou em anunciar-se.
Recordou-se da primeira vez em que ali estivera também hesitante, angustiada, solitária, desejando aconselhamento, apoio, força para aplacar seu desespero avassalador.
Decidindo-se por entrar, comunicou à recepcionista seu desejo de falar com o Dr. Fabrício. Esta disse não haver horários disponíveis para consultas naquele dia, mas informou-lhe os dias e horários para as próximas consultas.
Ela explicou que não desejava consultar-se. Estava na cidade apenas por um dia e pretendia tão somente cumprimentar o Dr. Fabricio, de quem fora cliente.
Pacientemente a moça voltou a examinar a agenda. Havia um intervalo de quinze minutos após os dois próximos atendimentos. Caso aceitasse poderia ser encaixada nesse espaço de tempo.
Disposta a esperar, distraiu-se observando as mudanças nos adereços e no mobiliário do recinto: poltronas em estilo moderno substituíam os antigos sofás em couro; vasos com plantas naturais e painéis de bom gosto alegravam o ambiente.
A sala acolhedora exibia uma iluminação difusa. Um suave tema musical convidava o espírito a mergulhar no vazio.
Analisou suas próprias diferenças. Não tinha mais o frescor da juventude. Entretanto, apesar dos seus quarenta e poucos anos sentia-se forte e realizada. Dr. Fabrício... Como estaria ele atualmente... Que reação teria ao revê-la?
Cerrou os olhos e entregou-se ás recordações.
Já se tinham passado quinze anos desde sua primeira visita àquele consultório; então vivia no esplendor da juventude; sonhos e esperanças lhe arrebatavam a imaginação, primícias do amor lhe incendiavam os sentidos; entanto, a unidade intrínseca dessas emoções fora ceifada pela trágica morte do homem amado; esse aniquilamento a transtornara a tal ponto, que fora levada a tentar contra a própria existência.
Convencida a procurar um mentor profissional, um terapeuta, recomendaram-lhe Fabrício Meirelles, um profissional, que embora jovem, era elogiado por sua competência no exercício da atividade.
Recordou-se de como atordoada aguardara a primeira entrevista, lutando contra o desejo de escapar dali e refugiar-se no definitivo irremediável.
O cuidadoso acompanhamento do Dr. Fabricio, suas prescrições medicamentosas, suas conceituações, levaram-na passo a passo a trilhar o difícil caminho da recuperação.
Todavia, a longa busca para esse restabelecimento pontilhou-se de avanços e recuos, crises de apatia; atos de obstinação; frequentes insurgências aos aconselhamentos...
Muito tempo transcorreu entre calmarias e tempestades, até que ela reencontrou a estabilidade emocional.
Superando a crise existencial, retomou o trabalho e os estudos universitários.
Transcorrido o tempo, retirado o processo medicamentoso do tratamento, esse prosseguiu com as entrevistas pontuais entre médico e paciente.
O longo período de turbulência ficara para tras.
Foi nessa época de relativa calma que ela, repentinamente, reconheceu-se tomada por um inflamado desejo de estar junto do médico fora dos horários pré-fixados; sentia carência de sua proximidade; receios inexplicáveis de suas ausências.
Reconheceu por si mesma que tal deslocamento tratava-se do fenômeno transferência. De imediato hesitou em discutir o assunto com o terapeuta. Afinal, o padrão demonstrava bons resultados para o processo da cura.
Decidida a confessar ao Dr. Fabricio essa nova forma de sentir-se em relação a ele, foi surpreendida com a confissão do terapeuta ser aquele sentimento recíproco. Ele afiançou-lhe ter mantido o controle por respeito à ética profissional; reprimira revelar-se por atos ou palavras que demonstrassem suas íntimas inclinações, evitando assim trair sua irrepreensível conduta.
Declarou ser aquela a primeira vez que o acometia tal alvoroço. Não escondeu a existência de esposa e filhos: (Casara-se muito jovem, quando ainda universitário. Possuía filhos, sendo que o mais velho deveria completar dezoito anos). Estava então, sujeito à presença e carinho devidos à família, assim como às obrigações subsequentes.
Para se colocarem a salvo da excêntrica situação, caso escolhessem render-se ao desejo que os desafiava, deveriam ser interrompidas as sessões de análise.
Atendendo à provocação da paixão entregaram-se a aventura-la. Entretanto na vivência do romance, sentimentos de culpa e censura o oprimiam, quando para adequar-se à nova situação, roubava horas do convívio familiar.
Ela, de outra forma, pretendia gozar plenamente o novo arrebatamento. Não desejava conter-se, mas ousar, recuperar o tempo perdido nos terrores da depressão. Viveria intensamente aquele novo amor, ainda que com seus percalços.
Enquanto ela se comprazia em vivenciar os alvores dessa felicidade, ele se debatia indeciso, recalcitrante, incapaz de buscar com ela os mesmos objetivos.
Viveram dois anos divididos entre a lucidez e o desvario, mortificados pelo pânico e a esperança, devorados pelo antagonismo da treva e da luz.
Paralelamente à sua experiência romântica ela reafirmou-se profissionalmente. Desenvolvera a impulsão de crescer e tornar-se vitoriosa perante a vida. O longo período do tratamento havia-lhe ensinado o autodomínio e a coragem para recomeçar.
Esse conhecimento alertou-a para a incongruência daquela ligação que se arrastava insolúvel. Reconheceu a fragilidade que a consumia e decidiu por si mesma colocar-se a salvo de um desenlace devastador. Conscientemente preparou-se para abdicar aos seus sonhos. Focou no seu crescimento pessoal. Promoveu contatos profissionais no exterior, compreendendo que só um afastamento definitivo faria prevalecer sua renúncia.
Ao partir para novos rumos interpôs entre eles distâncias continentais e incontáveis anos de silêncio.
......................................................................................
- Senhora... (a presença da secretária despertou-a de suas lembranças) – o doutor já vai recebê-la!
Dirigiu-se ao consultório com passos incertos; um atordoamento momentâneo turvou-lhe os olhos ao percebê-lo, de pé, a espera, como tantas vezes o vira.
À contra luz, reconheceu a figura alta e esbelta. Espreitou o rosto buscando encontrar os olhos serenos de outros tempos; descobriu-os encobertos por um par de óculos, para ela desconhecidos, que lhe roubavam a essência. Uma barba curta ensombrava-lhe o rosto. Os cabelos descontraidamente caiam em mechas longas sobre a nuca. As mudanças o haviam beneficiado. A descontração do seu novo estilo burlava as alterações reconhecíveis com a passagem dos anos. A emoção penalizava-a. Esperou dele as manifestações de surpresa e reconhecimento.
Ele avançou um passo tomando-lhe a mão. Ela reconheceu o toque seco, forte, que de pronto inspirava confiança. .
Mas o que se seguiu foi o silêncio e a estranheza com que ele a fitou, com a expressão interrogativa e expectante. Atônita ela buscou explicar-se a razão de um tão patético esquecimento.
- Cecília?!... Ele se adiantou com vivacidade – minha secretária não foi explícita... Em que ocasião você esteve sob meus cuidados?
Ela reconheceu a voz, a mesma voz vinda do longínquo, que agora soava com um leve tom de impaciência.
Seu ímpeto foi fugir, arfava. Lutou por dominar os sentimentos desencontrados que a pungiam; arrancou a custo da garganta as palavras que vieram articuladas num sussurro.
- Estive aqui pela primeira vez há cerca de quinze anos...
Através dos olhos nublados viu o semblante dele desanuviar-se, descontraindo-se numa emoção genuína.
- Oh! Sim, Cecília... Quinze anos, agora compreendo, quinze anos...! Você foi cliente do meu falecido pai!
A revelação pegou-a de chofre, possante, dolorosa. O pranto que há muito tentava conter, irrompeu, cascateante e de seu peito angustiado expandiram-se os soluços.
Vencida, impotente, sentiu-se fraquejar; cairia se ele não a amparasse nos seus braços.
.
.
.