Conto
Ficou a terra. Ficou a casa. Ficaram os quartos em ruínas, o teto frouxo, a luz cinzenta da varanda.
Entre os desencarnados do dia, ele parece o menos contrafeito, o que melhor recebeu a dádiva crepuscular do fechar de olhos a um mergulho em queda livre para o nada.
É morto. Findou-se ao cair da noite sob um estampido tão quieto em seus ouvidos que poderiam dizer que não se ouviu nada do estampido. E não se ouviu.
A maré cheia de seus pensamentos conduziu-o a um naufrágio de si mesmo; a tormenta no mar aberto de suas sensações selou-o na absorção aguda do silêncio e torpor ensimesmados. Estava morto? Está morto.
É defunto porque a vida já não lhe batia como algo útil no peito. É defunto porque descobriu que a vida é uma piada sem fundamento algum e de muitíssimo mau gosto. Viu na vida uma traição feroz de tudo aquilo o que estava nele mas não lhe pertencia. Amargou até a última derrota o que pôde suportar nesse teatro escuro de representações caóticas. Comeu no prato de seus contemporâneos o veneno da renúncia de tudo aquilo o que é clareza de ideias, brandura de gestos, palavras de afeição, respeito mútuo, tolerância...
Nunca viu essas coisas na vida.
Em revés de algum resquício vago de contentamento, ele enxergou no amor a pequena válvula de escape cujo gatilho jamais conseguiu acionar com os dedos. Não, nem isso lhe ocorreu como sorte, porque da última mulher que fez moldura em sua cama ficou somente a marca fria nos lençóis quando ela decidiu tomar de um barco em despedida, deixando atrás de si todo um rio-violeta manchado de inscrições do rosto dela. Os sentimentos o partiram. Ele estava do outro lado, à margem, enquanto as inscrições de tal mulher lhe giravam na cabeça como cores em colapso... silhuetas desmedidas. Foi sozinho. Esteve. Ficou...
A última grande companhia que teve foi a de Abel, um simpático buldogue que já estava morto quando a primeira aurora do inverno passado despontou no horizonte como se o dia que começava fosse o último. E foi.
Depois disso veio a ausência, essa coisa mágica e sem matéria que pesa com tanta firmeza que quase chega a ser resvalada pelo tato.
Chegou e passou tudo até esse momento. Agora, ali, ele está morto. É lixo, como todo o material orgânico outrora vivo torna-se lixo quando a existência escapa pelas narinas e se esvai num pulso que se perde. No entanto, ele parece ter companhia agora que já não luta mais ou se levanta, uma companhia definitiva que serve como testemunha da miséria de se estar só. São tantos... São companheiros de sujeira que já se misturam a ele e comem-se uns aos outros no instante em que suas carnes e a do morto já são uma coisa apenas, unas na superfície e na desgraça.
Foi terminado, mas está em número maior pela primeira vez em muitos anos!
E como chegou à morte? Sabe-se? Sim, se sabe. Mas não de certo, não de muito...
Adoeceu quando o nono mês do ano alcançou seu terceiro dia. Adoeceu tanto!... Adoeceu de tudo! E sua casa também ficou doente, bem como suas roupas, seu sorriso, seu melhor rosto na hora de andar na rua... Tudo o que usava para se esconder de si mesmo e dos outros caiu numa doença sem vestígios de melhoras.
Até que veio o dia de deitar, de virar uma dura quimera de pedra em cama de trapos. Que destino e que sorte! Perdeu tudo! O chão havia se desfeito em nódoa sob seus pés! Já não tinha onde pisar.
Mergulhado em lençol de poucos fios, manteve-se firme o quanto suportou... E o suspiro derradeiro configurou-se tão despreocupadamente que aquilo tudo nem rito de passagem parecia, mas sim uma cantiga de roda na qual o verso seguinte escondesse uma surpresa.
Minutos antes não sabia mais onde estava e tampouco o que queria. O ato proibido tomava forma e assumia concentração conforme ele levantava os pulsos em vermelho escuro – havia uma longa fenda para o outro lado entre uma gratidão e outra, entre uma esperança e outra, no meio da mesma dor. Buscava encontrar uma síntese de luminosidade que justificasse a chegada àquela ocasião.
Não encontrou. Apenas se permitiu deitar, deitar, de fato... E nem o barulho do clarim o seu ouvido deu por conta de ouvir: estava em débito com a vida; está quite com a morte.
Ficaram apenas a terra, a casa, o teto frouxo, a luz cinzenta da varanda...
E o quarto.