O gato vegano

Naia tinha um gato que criara desde o nascimento, e que fora abandonado na porta de sua casa junto com mais três outros filhotes. Apesar de todo o cuidado e dedicação que Naia dispôs a todos eles, apenas um sobrevivera. Ela então, tomada por um senso materno de responsabilidade, se dispôs a adotá-lo. Deu-lhe o nome de Bóris e rapidamente integrou-o a sua família, que naquele momento era composta apenas dela mesma, pois estava morando sozinha, após o rompimento de um relacionamento de dois anos com o namorado, que não por acaso, tinha o mesmo nome do gato. O apelidamento do bicho começou como uma brincadeira com suas amigas, mas que logo ganhou seriedade e terminou ficando. Apesar de tudo, ela não nutria rancor pelo ex-namorado, no entanto sentia-se frustrada por suas vidas não terem se encaixado da forma que ela esperava e pelo que via como a perda do tanto de si mesma que tinha investido no relacionamento. Naia era vegana e frequentemente pouco comedida em suas posturas e postagens em redes sociais, na defesa de seus princípios alimentares. Há anos não comia carne, e também tinha aversão à alimentos processados industrialmente. De forma que achava absurda a noção de alimentar animais à base de ração. Nos primeiros meses Bóris se alimentou apenas de um leite especial para crianças que custava os olhos da cara. Mas logo ela percebeu que ele precisava de outras coisas além de leite. Dada a sua repulsa a lidar com carne de animais mortos, ela decidiu dividir sua própria comida com o gato e ver se ele aceitava. Para sua surpresa, Bóris comeu alegremente praticamente tudo o que ela o oferecia, à exceção de vegetais folhosos, brócolis e couve flor. Dividia com ele até sua suplementação de vitamina B12, cuidadosamente calculada de maneira proporcional ao peso do animal.

Bóris cresceu alegre, e aos seis meses foi castrado, o que o tornou um animal ainda mais calmo e complacente, em completa oposição à pessoa que tinha lhe inspirado o nome.

Naia gostava de se gabar que Bóris nunca sequer havia provado carne de outro animal e ainda assim era excepcionalmente saudável e feliz.

Muita gente a criticava por impor uma dieta vegana a um animal carnívoro, mas ela não se deixava afetar pelos que os outros diziam, e fazia de tudo para dar ao gato uma alimentação diversa e balanceada, à espelho do que fazia para si mesma.

Bóris chegou ao seu primeiro ano de vida pesando quase seis quilos. Era extremamente bem tratado e mimado. Tinha todos os tipos de brinquedos que se poderia comprar para um gato, além de tomar banhos periódicos e receber pequenas doses de erva-de-gato semanalmente.

Todos os amigos de Naia que vinham a sua casa se apaixonavam imediatamente por Bóris, que prontamente se jogava em seus colos em busca de um pouco de carinho e atenção.

Como gato de apartamento, Bóris gostava de ficar na janela da sala, que era telada, para evitar que fugisse, olhando o movimento da rua.

Por morar no térreo, muitos dos vizinhos do prédio gostavam de passar e fazer carrinho em sua cabeça nesses momentos, sendo ele muito querido por todos.

Numa dessas coincidências da vida, Naia deu de cara com o ex namorado, o Bóris original num mercado perto de casa. Os dois travaram uma curto diálogo levemente constrangido, pois não se falavam desde o rompimento, e então se despediram, seguindo cada um para um lado.

Uma semana depois, Naia viu o seu telefone tocando e reconheceu o número de quem lhe ligava. Ela havia apagado o contato do telefone, mas de alguma forma ainda tinha o número gravado na memória.

primeiramente ela hesitou, mas logo tomou o celular na mão e atendeu.

- Naia? – Disse a voz conhecida do ex-namorado.

- Oi, Bóris.

- Tudo bem?

- Sim.

- Estou te ligando por que não consegui tirar você da cabeça depois de semana passada.

Naia sentiu uma pontada e um frio no estômago, mas conseguiu manter a calma.

- E?

- E ai que eu queria saber se poderia te ver novamente.

- Não sei, Bóris. Isso pode complicar mais as coisas.

- Olha. Somos dois adultos, não somos?

- Somos.

- eu percebi que você também ficou surpresa ao me ver. E não foi exatamente uma surpresa ruim, pelo que deu pra ver.

- É...

- Você está saindo com alguém?

- Não estou.

- Nem eu... Então não vejo nenhum impedimento.

- Ok.

- Ok é um sim?

- Sim.

- Maravilha.

- Você pode vir aqui em casa na sexta feira no começo da noite. Tem algumas coisas suas aqui que eu poderia aproveitar para te devolver.

- Certo. Sexta feira de noite eu apareço por aí.

- Tá.

- Boa noite. Beijo.

- Beijo.

Naia desligou o telefone e ficou olhando para o gato na janela, com o olhar fixo do lado de fora, como se espreitasse por alguma coisa.

A sexta feira chegou e o Bóris original bateu na porta. Naia sentiu um frio na espinha, mas decidiu atender. Todas as suas amigas tinham desaconselhado esse encontro, mas ela era particularmente teimosa quando se tratava de questões amorosas. Então decidiu que iria ver o que sairia daquele encontro.

O ex-namorado estava postado em sua porta com uma garrafa de vinho seco, do tipo que ela gostava.

Ela deixou que ele entrasse e logo os dois se sentaram no sofá.

- Não sabia que você tinha um gato. – Ele disse, tentando quebrar o silêncio.

- Tenho sim. Ele fez um ano ha poucos dias.

- Ah sim. Foi depois que nos separamos então.

- Sim Sim.

- Qual o nome dele?

Naia não conseguiu segurar o riso, e teve certeza que também ficou com o rosto rubro.

- O que foi? – ele continuou.

- Espero que você não fique chateado...

- Chateado com o que?

- O nome dele é Bóris.

O rapaz caiu na risada também e pegou o gato no colo quando esse se aproximou.

- Ah. É um nome bonito.

- Deixa de ser convencido. – Ela disse, tomando o gato em seu colo.

- Ok Ok. Bóris é um nome horrível.

Os dois caíram na risada e Naia percebeu que o quanto tinha sentido falta dele... mas era muito cedo para mencionar esse fato. Então se levantou e falou.

- Bem, vamos para a cozinha. Eu estava fazendo o jantar. Você pode me ajudar e cortar as verduras.

- Tá bom. Acho que eu sei fazer isso ainda.

Bóris, o homem, era um carnista ferrenho. Adorava churrasco. Adorava carne de todos os tipos. O que sempre tinha sido um problema, pois ele sempre dizia que uma refeição sem carne dificilmente o deixava satisfeito.

Naia achava que era implicância, mas sempre deu um jeito de não meter o dedo nas preferencias alimentares dos outros.

Os dois prepararam o jantar e quando Naia se serviu, separou também uma parte para o gato.

Foi quando o ex-namorado a questionou.

- Você dá comida vegetariana pro gato?

- Sim. Ele só come isso. Eu não dou ração a ele

- Sério? E isso é possível?

- É sim. Você está vendo ele ai, super bem, não está?

- Estou. Só achei que isso poderia fazer mal.

- Não faz. Tanto que ele nunca comeu carne, de animal algum. Nem ração. Só leite e comida vegana.

- Bem. Isso é meio diferente. Mas sei lá, é cada coisa que se vê por ai.

- Justamente.

Naia não conseguiu disfarçar sua contrariedade por ser questionada quanto a alimentação de seu gato, e logo o Ex-namorado que a conhecia muito bem decidiu mudar de assunto, mas ela continuou.

- Aposto que ele sequer se interessaria caso alguém lhe oferecesse carne. Tenho quase certeza.

O Bóris não questionou nada, e ficou apenas observando seu homônimo comer a comida que lhe tinha sido oferecida, como se fosse tudo muito natural.

A noite se seguiu e os dois dividiram a garrafa de vinho que Bóris, o humano, havia trazido, e depois outra que Naia tinha guardada no armário.

Terminaram juntos, na cama, como se ainda fossem um casal, e dormiram um nos braços do outro, com Bóris, o gato, deitado entre as pernas de Naia.

Os dois acordaram pela manhã com o barulho do interfone.

Bóris, o humano, se levantou e perguntou.

- Posso ver quem é?

- Pode. – Disse Naia sorrindo.

Bóris se vestiu e então foi para a sala, seguido de perto pelo gato, que parecia ter se apegado bastante ao homem que tinha servido de inspiração para seu nome.

Atendeu o interfone e ouviu pelo aparelho

- É o carteiro.

- Vou abrir – Respondeu.

Ele apertou um botão e o portão gradeado do lado de fora se abriu para que o carteiro entrasse.

Ele saiu em seguida e foi receber a correspondência para Naia.

Sem que ele se desse conta, até que fosse tarde demais, o gato correu por debaixo de suas pernas e desapareceu no pátio do prédio.

O carteiro foi embora e Bóris correu para dentro de casa para avisar a Naia da fuga do gato.

Ela veio desesperada e os dois se puseram a procurar pelo bicho por todo pátio.

Depois de um tempo, os dois desistiram, com Naia entre lágrimas, e chorando demais para gritar com o ex-namorado, por ter deixado o gato fugir, e retornaram para dentro do apartamento, deixando a porta aberta atrás de si.

- Ele vai voltar, meu amor. Gatos são muito apegados aos seus territórios.

- Mas ele nunca foi para o lado de fora. Ele pode se perder, pode ser atropelado.

- Calma meu amor. Vai dar tudo certo.

Foi quando Naia não se conteve mais e gritou

- Não me chame de meu amor, seu filho da puta! Não dá pra confiar em nada que você faz. Sempre foi assim!

- Olha, A gente não precisa entrar nessa discussão agora.

- Eu preciso que você vá embora e nunca mais volte aqui.

- Ok. – Respondeu Bóris, sabendo que não adiantava discutir com ela naquele estado.

E se sentindo mal por sua displicência, seguiu para fora da casa esperando que o gato voltasse e esse incidente não pusesse o último prego no caixão da sua história com Naia.

Ela sequer esperou que ele saísse antes de bater a porta atrás de si.

Quando teve certeza que ele já não estava lá, Naia voltou para a sala e abriu a porta, esperando que o gato voltasse eventualmente.

Depois foi para o quarto e chorou agarrada ao travesseiro até pegar no sono.

Só acordou depois do meio dia, com uma forte enxaqueca, provavelmente causada pelo estresse da fuga do gato.

Foi para a sala, cobrindo os olhos com as mãos para evitar a luz, e procurou por um remédio em sua bolsa que estava sobre a mesa.

Só então notou as penas espalhadas pela sala. Bóris, o gato, estava deitado no meio delas, se lambendo cuidadosamente.

As penas, coloridas em amarelo e alaranjado eram provavelmente de algum passarinho que seu gato havia devorado. As penas, e um par de patas eram tudo o que restaram do bicho.

Naia se sentou no chão, enojada, frustrada e se sentindo traída pelo animal... Que só lhe mostrou o quão frágeis eram suas ilusões.

Arrependeu-se naquele momento do nome que tinha lhe dado, mas se recompôs, tomou um remédio para a enxaqueca, foi até o açougue mais próximo e pediu meio quilo de carne moída para o gato.

Pelo menos naquilo, daria o braço a torcer.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 01/04/2018
Reeditado em 01/04/2018
Código do texto: T6297087
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