O eterno retorno

Após a porteira de tábua, recém-pintada de óleo queimado, Pai me perguntou: "Que árvore é aquela?". Não sabia. "É Óleo", ele mesmo respondeu. "E aquela?". "Aroeira!", respondi orgulhoso. "Pororoca", marcando mais um ponto. Esta me era conhecida. Suas folhas macias e seu talo frágil eram meus alvos quando saía pelos pastos com minha varinha, golpeando ramos de assa-peixes e alecrins, lembrando dos filmes da televisão. E a gente seguia, naquele processo de educação rural, na pedagogia da roça; eu aprendendo nomes, recebendo tradições, ouvindo histórias.

Com mais um cavalo emprestado do meu tio, estava decidido: eu iria na égua Granfina. Muito brava, mas boa de força. Era só não ficar no demorado à sua frente e evitado estava o risco da mordida. Sobre ela eu me sentia seguro. Estalava o chicote e gritava: "Rá! Embora Granfina!".

Meus primos, Celso e Doete, também iriam. Sairíamos na segunda, cedinho, rumo ao Olhos D'água, buscar as novilhas que estavam no pasto do terreno que minha mãe herdou de meu avô, na beira da represa de Furnas que cobrira as terras do seu bisavô.

Saímos nos primeiros cantares de galo. Estrada a fora, ritmo forte. Meus primos eram melhores que eu no ofício. Eu sabia. Eles iam de arreio cotiano; eu, no de cabeças. Tinha medo de cair. As cabeças do arreio dão segurança, mais da ilusão do que de fato, mas dão.

Chegamos ao descer das dez. Hora do almoço de gente da roça. Vó fizera o prato de semana: arroz, feijão, ovo frito, tomate. Benção tomada, muita água, pra nós e pros animais, novilhas na estrada, sinal da cruz feito. A jornada de volta seria longa, findando pelo entardecer, conforme fosse do agrado de Deus.

"Eia!", "Ôu! Ôu", "Firma Briosa", "Vamo Laranja!", "Rá!". Marcha e trote, tropel na estrada, poeira. Começo bom, mas sem muito para mudar. Passada a figueira dos galhos tortos, de tão assombrada que me dava medo em pleno dia, entramos na área perigosa: as terras do Ubirajara. Passadas que fossem, seria apenas o corredor da estrada de rodagem. Não teríamos problema até chegar ao destino. Mas, antes, o pasto aberto, sem cerca e o pior: a mata. Dois quilômetros de risco. Todos temíamos aquele momento desde a saída de casa. Qualquer conversa tida no durar da vinda fora apenas para não se falar daquele trecho. Deus na frente, Nossa Senhora na guia.

No entrar da segunda novilha, feito o estrago: o gado estourou. Gritos nervosos, chicotes, pau seco quebrando. O combinar teve de ser rápido: "Juntamos de novo as novilhas na saída da mata, na hora que der!". "Combinado!". "Alguém abre a porteira!". "Rá!"... e a dispersão foi total. Cada um de nós para um lado, atrás de uma novilha. Buscava-se uma, perdiam-se duas. O sol de agosto não perdoava. Já regulava onze e meia. Fadiga, braços riscados de galhos, cavalos suados e nós.

A mata não era grande, mas suas muitas estradinhas faziam com que se perdesse fácil o rumo. Vez em quando topava um primo, outra, uma novilha fugindo. Meu pai gritava ao longe, o outro primo para lá, “e a estrada que leva à porteira?” Cabeça e cavalos rodando.

Na duração dessa labuta, segui, enquanto o dia avançava. Os gritos, cada vez mais distantes, até que quase não os ouvia. As novilhas sumiram; a estrada ainda mais. A porteira de saída nunca mais vi, e da mata jamais saí. Só achei pequenos trilhos que me levaram a outros e de outros para onde havia estado antes. Veio tarde, veio noite. Dias e semanas e meses se foram.

Quando a Granfina se cansa, paro e a amarro com a rédea longa, para dar espaço de ela pastar. Gosto mais quando é na beira do rego d'água. Ela bebe, eu bebo, comungando nossas solidões.

No esperar de sua pastagem, sento-me sob a sombra de uma aroeira nova. Meu olhar se perde no céu, para além da mata. Seu azul me descansa. Como um pedaço de bolo que Vó pôs no embornal. A banana, guardo para depois. Um longínquo grito ecoa. "Serão eles? Ainda procuram?". Ninguém para me responder.

É nessas paradas que invento de fazer coisas: mudo para a cidade, faço faculdade, fico jovem e adulto, perco cabelos e ganho rugas, arrumo namoro e casamento, entro no seminário e saio, escrevo cartas e chupo picolé de creme, daqueles que o Mané Inácio vende nos domingos de futebol na Nova Barra.

Mas se percebo que a Granfina já descansou, torno a lhe apertar o arreio, firmo o chapéu e me jogo no seu lombo. Escolho um dos trilhos, junto as rédeas na esquerda e estalo o chicote com a direita e grito: "Rá! Embora Granfina!".

José Carlos Freire
Enviado por José Carlos Freire em 01/04/2018
Reeditado em 01/04/2018
Código do texto: T6296610
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