BAMBU

Bambu. Companheiro constante da vida na roça, sobretudo de meninos à cata de diversão.

Bambu grande, gigante até, com que Raulzinho e Tiago faziam as traves do gol. Cortado cuidadosamente para não rachar, depois de instalada a baliza, era martelado sem o menor cuidado pela bola que os dois craques disparavam um contra o outro por horas a fio.

Bambu grosso, cortado mais curto, em que amarravam um barbante para transformá-lo em cavalo em que galopavam sem parar. Às vezes, gritavam um “aiô Silver”, inspirados pelo herói mascarado da televisão.

Bambu cortado ainda mais curto, na forma de cacete a justificar a valentia infantil. Também servia de espingarda para tocaiar mocinhos, matar bandidos e índios selvagens (supostamente) num bam-bam-bam de longa e infernal duração. Quando a “munição” acabava, o bambu virava espada nas mãos dos idólatras do Falcão Negro ou dos bravos mosqueteiros, que derrotavam dragões, tiranos e soldados cruéis, salvando as princesas imaginárias, se alguma prima não estivesse por perto para completar a representação.

Bambu fininho, da vara marota armada com linha, anzol e minhoca, que o peixe retirava do fundo do rio, impiedosamente.

Bambu do estoque, de tiro seguro com a pelota de papel molhado, em arremedo de bala, cortando o ar rumo ao alvo.

Bambu desfiado em tiras com que se compunham os jequis (ou jiquis, como era mais comum pronunciar), espécie de cestos cônicos, colocados como armadilhas para os peixes nos trilhos d´água que se formavam e serviam de “ladrões” naturais para o leito transbordante do rio Pirapetinga. Os peixes enveredavam por esses trilhos d´água, em busca de comida, penetravam na boca larga do jiqui e ficavam retidos na saída estreita, sem poder retroceder. Aí era só recolher os mais apetitosos para a festa gastronômica.

Bambu com que se armavam “carroças”, ligando dois deles com ripas de madeira sobre as quais se colocava uma caixa para transporte de mercadorias. Mais hábil com as ferramentas do que Tiago, Raulzinho era quem construía essas carroças. Depois, os dois puxavam-nas para todo lado e, vez por outra, transportavam goiabas e outras frutas que a boa tia Chiquinha comprava de bom grado dos sobrinhos.

Bambu de todas as horas, enfim, companheiro das crianças, espécie de protetor nas caminhadas, estímulo às suas estrepolias, parte inseparável do seu dia-a-dia no sítio.

Mesmo quando Raulzinho não estava, Tiago ia sempre ao bambual mais próximo. Embora distasse poucos metros da casa, parecia ao menino outro mundo dentro do seu mundo do sítio. Socado já no pé de um declive no pasto, dali mal se avistava a cumeeira do telhado da casa. Tiago podia imaginar que estava no meio de densa floresta, em região mágica, longínqua e desconhecida, onde até onça rosnava na imaginação do explorador mirim. Enquanto permanecia ali, vinham à cabeça as histórias dos caboclos e o perigo das cobras, estas sim, presentes no sítio e que costumavam ser atraídas pelo bambual, segundo diziam. Tiago nunca viu cobra entre os bambus, mas enfrentar esse perigo potencial, inda mais sozinho, aumentava sua autoestima em matéria de coragem.

Ao sabor das histórias e da imaginação, o farfalhar permanente das folhas e o assobio do vento nas varas de bambu animavam as manhãs e tardes de calmaria no sítio, fazendo com que o bambual cheirasse a aventura. Até um tesouro contavam que havia ali. Uma caixa cheia de bolinhas de vidro teria sido enterrada no bambual pelo jovem Jurandir, que vivera temporariamente no sítio e de quem Tiago vagamente se recordava, pois o vira em poucas ocasiões, quando tinha somente quatro ou cinco anos. Depois disso, Tiago nunca mais viu Jurandir, o que chegou a estranhar. Em sua trôpega lembrança, o jovem seria irmão de Pedro e de Zé Magrão, o que não correspondia à realidade, contudo.

O tesouro das bolinhas de vidro, ou de gude, como as chamavam os dois primos da cidade grande, não lhes saía da cabeça e foi uma sorte, tanto para Chiquinha quanto para o equilíbrio ecológico do lugar, que Tiago e Raulzinho não se pusessem a escavar o terreno em volta do bambual, à procura das preciosidades. Para não cavar em vão, limitaram-se a buscar algum sinal do esconderijo das bolinhas, o que jamais encontraram.

Nos anos seguintes, em caminhadas ou em viagens de carro, Tiago viu muitos outros bambuais. Alguns eram fartos e imponentes, outros, desmilinguidos amontoados de varas toscas como que prestes a extinguir-se. Todos eles evocavam, de alguma forma, boas lembranças do velho bambual tantas vezes visitado no sítio, tão velho quanto a infância cada vez mais remota. Em pensamento, transmitia ao querido bambual suas saudosas lembranças, acompanhadas de desculpas pelos numerosos sacrifícios que lhe haviam sido impostos na ávida retirada de balizas, armas, varas de pescar e cavalos de bambu.

Trecho do conto "Ibitinema" (Ibitinema e Outras Histórias, 2016, ed. Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP)