O hospedeiro e a hospitalidade

Como quem escondia suas mãos atadas, deu dois passos para trás. Assoviava em seu disfarce esperando que eu da porta me retirasse e o deixasse descobrir como se livrar daquelas cordas. Mas como havia chegado àquele ponto? Ora, depois eu soube.

A princípio fora como um livro que se lê do meio, ou como a larva que entra no fruto de dura casca e consome seu interior, então, quando alguém busca seu conteúdo, encontra um novo habitante nutrido e mesclado à antiga polpa, absorveu sua cor, seu cheiro, seu sabor e a doçura que carregava. A diferença é que nesse caso permaneceram o fruto e também a árvore, mesmo com suas galerias abertas e lacunas novas, descobriu formas de se manter doce, não igual ao que era, mas de novas formas.

Ele havia decidido tornar-se um desbravador, resolveu fazer de sua curiosidade um dom, impulsionado pelo medo de ser encontrado, perdeu-se de propósito, e se lançou como quem tem coragem. Sua jornada era intensa, nas coisas que via e das profundidades que saía, volta e meia as aventuras o cercavam e ele entendia que tinha sorte, sorte como um tipo de graça. E fazendo jus às suas particularidades, seus gostos peculiares em qualquer lugar chamariam atenção, pois sentia-se atraído pela luz de velas e das chamas agitadas por brisas poucas, detalhes meio mórbidos e suficientemente melancólicos, preguiçosos, a clamar pelo brilho do sol que certamente viria ao amanhecer. E tal visão fora a visão que encheu seus olhos ao passar em frente daquela moradia solitária, um brilho tímido saía pela janela aberta, enquanto ele se esgueirou atrás de uma frondosa árvore, assistido a última visita a sair como quem suspira satisfeita pela hospitalidade que havia encontrado. "Que doce armadilha!" Pensou. Sua curiosidade o tomava por inteiro, mas o medo do desconhecido o apavorava, então ele observou cuidadosamente a casa e viu que em uma lateral se expunha um jardim e com objetos feitos a mão, era aberto para estrada, era espaço de acesso de quem desejasse e o lugar do escape da arte que ali vivia, se a casa fosse um rio ali seria um braço. Ao final do jardim havia uma grande porta cerrada, com sinais de que não costumava ser aberta, se fosse menor estaria certamente escondida, parecia ficar em algum lugar nos fundos da casa, talvez a cozinha.

De uma janelinha no andar de cima a dona da propriedade tinha vista privilegiada da exploração daquele curioso, estranhando o horário da visita, permaneceu atenta, até que viu o homem sentar no centro e puxar uma ferramenta e produzir algo alternando o olhar para uma peça de um dos cantos do jardim e para aquilo que formava em sua mão. Pendurou o objeto do lado esquerdo da roseira de rosas vermelhas e saiu. Pela manhã ela resolveu olhar que peça tinha sido exposta, era uma moça de cabelos encaracolados, que tinha semelhança com o desenho da moça de cabelos ao vento -- a peça do canto. Intrigada a proprietária entrou e passou a ficar cada vez mais receosa com a visita noturna daquele viajante que sempre deixava uma peça nova correlacionada com tudo que ela tinha exposto, ele se sentia em casa e ela sentia isso.

Ao passar por sua sala notou diferença na posição dos móveis e ao subir para o quarto sentiu um cheiro doce, havia algo diferente ali. Dia após dia ela via surgir novos manjares em sua dispensa e ao buscar os alimentos guardados não os encontrava. Pensou estar louca, até que resolveu descer ao jardim e verificar a tranca da porta obsoleta, em um instante de pavor quis fechá-la para sempre com tijolos e cimento, mas verificou a tranca intacta e aquietou-se. Teve a ideia de espalhar folhas secas na entrada do jardim e a noite esperou ouvir se alguém entraria por ele, e ouviu. Preparou-se para combater o invasor com cordas e um martelo e ao olhar pela janela não o viu. Uma certeza a impulsionou até a cozinha e ao chegar lá viu o homem à beira do fogão a se servir e preparar comida já envolto no cobertor que ela deixava sobre o sofá da sala. Ela o viu e não conseguiu dizer nada e nem ele abriu a boca ou se mexeu enquanto ela tomou o cobertor e o prato de suas mãos jogando-os no chão, pegou a bagagem dele sobre a mesa da sala de jantar e atirou-a em sua cabeça, o peso das ferramentas que ele trazia o deixaram tonto, ela o amarrou (ele praticamente consentiu) e o encerrou no porão. Saiu correndo para fora e assentou-se embaixo da grande árvore em frente a casa e chorou a noite inteira.

Já era dia quando a encontrei soluçando na porta, me inclinei e perguntei o que havia acontecido, ela me abraçou e me entregou a chave "Ele está no porão, não sei o que faço! É um invasor... Isso é tudo que sei e nada que eu realmente entenda!". Aflito abri a porta e encontrei um homem envergonhado que nada parecia com um invasor, escondendo o que não era possível esconder e olhando para o nada com um medo visível. Para tentar ajudá-los, resolvi fazer algo, comecei sendo o primeiro a ser claro e disse: "Fostes confundido em seu modo de agir. A porta da frente ainda continua sendo o mais respeitoso lugar de se chegar, a sala de estar foi feita para os primeiros passos, para apresentações, é o lugar de receber o primeiro café, lugar de recepção. Agora, não disfarce, apenas acalme-se... Meu senhor, eu sou apenas o narrador!"