Relato da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo G
Naquela noite, Jesus teve um pesadelo. Sonhou que um de seus discípulos haveria de entregá-lo às autoridades, que já há tanto buscavam um meio de se livrarem do filho do Homem, incômodo que lhes era. Quem dentre eles seria capaz de traí-lo? Ainda há alguns dias festejara com eles seu trigésimo terceiro aniversário. Seria então, o sonho, o sinal de que era chegada a hora de cumprir-se a profecia? Depois de quarenta dias de penitência no deserto, havia vencido o diabo e resistido às suas tentações, em obediência às escrituras. Com aquele sonho, o pai lhe relembrava do seu vaticínio. Havia a derradeira tentação, a maior de todas e ainda não vencida: a de abandonar sua missão. Parecia-lhe estranho, porém, uma missão cumprir-se na morte, ela que põe fim a todas as coisas, ela que a tudo destrói e apaga. Tantos foram os profetas que previram e determinaram seu triste destino, não poderia fugir.
Até agora, estranhamente tudo se encaminhara no sentido de fazer cumprir as profecias sagradas. Um deles o trairia, então? Pobre nazareno. Tantas Madalenas, tantos homens atormentados por demônios, tantos cegos, coxos à procura de salvação, todos carentes de suas palavras. No entanto, deveria resignar-se a levar sobre seus ombros uma cruz, símbolo dos tormentos, dores e falhas de todos os homens. Por que não poderia também ele falhar, hesitar? Sua mensagem de paz terminaria em um injusto derramamento de sangue, sangue inocente, o seu próprio sangue. Culminaria no triunfo da maldade humana, na cruel execução do filho de deus, cuja morte, no fim, deveria redimir os pecados daqueles que o flagelariam e o poriam em uma cruz.
Mas então, por que não poupar os homens de sujarem suas mãos com sangue divino? Por que deixar cair sobre a humanidade mais essa culpa, mais esse crime? Se sua ressurreição libertaria a todos, torná-los-ia também reféns daquela redenção, escravos daquele pendão. O triunfo sobre a morte não expurgaria a mancha escarlate eternamente marcada em sua mortalha, não apagaria o sangue atirado em suas palavras. A morte, fiel cumpridora de seus deveres desde os tempos imemoriais, secular colaboradora dos deuses, seria infamada, ofendida e ultrajada, transformada em uma inimiga, a qual caberia a ele vencer. Ela que nunca levou para si nada além daquilo que lhe tinha sido reservado.
Que os desígnios do criador escapassem à compreensão e ao entendimento dos homens parece algo aceitável, mas há de ter sempre uma ordem, uma lógica superior a ser obedecida, lógica essa que escapava ao próprio filho de deus. A profecia estava equivocada. Até onde poderia ir tamanha insensatez apenas para comprovar as profecias e realizar as escrituras? Não seria possível reescrever todo o destino da humanidade?
Assim, as agonias do cristo acompanhavam-no já muito antes daquela vigília no monte das oliveiras, quando, refletindo sobre aquele sonho, deu-se conta de que sua missão esbarrava em uma lacuna, em um absurdo. Ainda não haveria de transpirar sangue, pois esse deveria ser poupado. Feito homem, naturalmente temia a morte, porém, não era por esse temor que vacilava, mas por não desejar ver-se entregue a um desatino, a um martírio sem nexo. Por que permitiria o pai que o filho fosse entregue aos seus algozes? Para provar a falibilidade e a insensatez de sua mais perfeita obra e oferecer-lhes depois a única salvação possível, a salvação dos céus? Já não lhe bastavam todas suas tentativas e interferências? O pai devia estar louco. O Pai, de cuja onisciência nada escapava, talvez já vislumbrasse o alto custo daquele sacrifício, pois mesmo o Filho, a quem muita coisa ainda não havia sido revelada, o previa. Mas ainda assim, seguia firme em seu plano, talvez sua mais distração e seu maior projeto na solidão da eternidade. Quem sabe, a eternidade começasse a lhe cegar a razão e comprometer-lhe a sanidade. Por isso, não seria o filho a se pôr entre deus e os homens, a afrontar a morte e barganhar uma salvação. Prosseguiria sua missão, continuaria anunciando aos homens aquilo que só o filho de deus poderia verdadeiramente lhes ensinar, o amor.
Nesse momento, entra no recinto Maria Madalena, que beija as mãos do homem. Percebendo no rosto do mestre o semblante preocupado, senta-se ao lado dele. Traz consigo alguns pães, oferece-os a Jesus. Ele a encara e procura em seus olhos o sinal da traição. Havia muita sinceridade naqueles olhos, admiração, havia amor. Não poderia ser ela. Por mais que os homens de seu tempo, ensinados pelos livros sagrados, não se cansassem de ver nelas a culpa do pecado de Adão, concluiu que seria um homem o seu traidor. Jesus a encara, retribui o sorriso, toma-lhe das mãos um pão que parte, costume adquirido na pobreza. Dá a Madalena um pedaço a fim de mantê-los ocupados e dissipar as agonias. Em alguns dias, partiria para Jerusalém.
(...)
Em uma pequena casa, às margens do caminho para a cidade santa, um pobre e humilde burro esperava, ansioso, a nobre missão que lhe seria conferida, aguardava para servir e carregar sobre o si o filho de deus. O burrico morreu algumas semanas depois, de velhice ou de frustração, sem honras, descartado como um animal qualquer. Não alcançaria a graça de adentrar nos muros sagrados, de ser recebido com júbilo ao agito dos ramos e ovações da multidão. Em verdade, jamais iria a Jerusalém. Da mesma forma, um galo do palácio do Sumo Sacerdote ficaria esperando para cantar a traição de Pedro, um agouro a ser lembrado para sempre, a única chance que teria o pobre galo de eternizar seu canto.
Também um homem passaria despercebido, não pelas suas habilidades de canto esquecidas, mas por um gesto simples que haveria de perpetuar. Por não precisar mais lavar suas mãos em uma hora tão importante, privaria a nós todos dessa expressão tão comum. Pôncio Pilatos, o governador romano, homem sensato por temer a fúria dos judeus, sequer seria injustiçado. Não mais o acusariam de ter entregado o Cristo a seus algozes, como se disso fosse culpado. Seu governo haveria de terminar sem grandes conturbações além dos tradicionais problemas de uma colônia judaica. Mas haveria também homens comuns cujas rotas seriam alteradas. Um cirineu, voltando para casa, ficaria parado à beira da via crucis, tomado de uma estranha intuição de que ali deveria estar. Permaneceria por horas parado numa encruzilhada, à espera de um condenado que nunca irá ajudar. Depois de um tempo, ele se cansa, dá uma esmola a um mendigo próximo para aliviar sua consciência e com isso ganha o seu quinhão de perdão divino. Quem sabe, algum tempo depois passasse por ali um outro condenado qualquer, talvez o insurgente Barrabás, que já não teria alguém para morrer em seu lugar. Mas ora, quem melhor que um criminoso para representar a humanidade?
As carpideiras não chorariam o Cristo, nem teriam a misericórdia do criador. Que procurassem um moribundo qualquer, pois que disso o mundo sempre esteve cheio. Na falta de alguém melhor, que chorem então por seus filhos e por sua própria miséria. Sempre há muito o que se chorar pelos homens. De toda forma, não acompanhariam o séquito da Virgem, não consolariam a mãe do filho de deus, tampouco enxugariam o rosto ensangüentado do nazareno. Um certo espinheiro não teria a honra de ceder seus ramos e espinhos para que com eles se fizesse a coroa que adornaria e torturaria a cabeça do salvador. Ceder espinhos pode não ser exatamente a mais nobre das missões, mas sempre há aqueles para quem essas infelicidades se reservam e se destinam. Quem sabe isso poupasse a planta de algum remorso, se é que há remorso pior do que o de se morrer no esquecimento.
No alto do Gólgota, apenas dois crucificados e uma pequena multidão sedenta por sangue, divertindo-se com o espetáculo cruel e sádico que se encena em nome da justiça. Numa das cruzes, um ladrão arrependido. Contudo, mais sensato usarmos a expressão ladrão bom, já que um bom ladrão jamais seria capturado, menos ainda condenado. Bom ladrão ou ladrão bom, o fato é que ficaria à espera de sua salvação, de um perdão divino que jamais receberia. Morreria criminoso e, sem receber o perdão de seu companheiro de cruz, seria julgado pelo jugo severo e impiedoso do pai. Sem aquela indulgência de última hora que lhe permitiria furar a fila e adentrar mais cedo nos portões do paraíso
Haveria ainda um pequeno destacamento de soldados romanos, ali colocados para assegurar a execução dos patifes e a manutenção da ordem. Mas aqui, ao fim de seu dia, não teriam espólio para recolher. Não levariam nada para suas casas, não repartiriam entre si as vestes do santo condenado. Quem sabe teria sido essa a única chance de aprenderem a partilhar. O mais sortudo dentre eles, não teria como testar sua sorte, não ganharia seu prêmio funesto pela execução, aquela irônica recompensa, uma túnica sem costura, feita de uma peça única de cima até em baixo, a qual ofereceria de presente ao seu filho que nasceria naquela noite. O vinagre, contido numa jarra aos pés de uma cruz, não seria oferecido ao filho de deus. Sem ninguém para degustá-lo, ao fim daquele dia, seria descartado como uma bebida qualquer e da mesma forma, a esponja, que passaria pelas bocas de mil bandidos, mas não pela do salvador. Os que se compraziam com o drama, ofendendo e escarnecendo os condenados, não inflamariam a ira divina por fazer chacota do filho de deus, gastariam seu ódio apenas com aqueles a quem já se tinha dado por culpados, homens rejeitados pelos céus e por seus concidadãos, feitos protagonistas de um episódio de expiação.
Ficaria um espaço vazio entre as cruzes, mas também um sepulcro permaneceria desocupado, vago até que um outro defunto, certamente não tão ilustre, fosse ali ser depositado. Jerusalém seguiria sua vida, talvez menos santa, talvez menos sagrada. Todos aqueles lugares nada mais seriam que cenários da vida comum. Quem sabe também, os infernos ficassem um pouco mais cheios, mas, o que é o inferno para homens tão acostumados à miséria, à dor, tão apegados a suas frivolidades e que parecem satisfeitos e realizados em tornar seu mundo, ainda mais, um lugar de penar?
Enquanto comia daquele pão, Jesus meditava sobre todas essas coisas e refletia sobre sua missão. Pega uma faca e pede a Madalena que lhe corte os cabelos e a barba. Mais tarde, quando os apóstolos chegaram ao recinto onde estava Jesus, já não mais o encontraram por lá. Apenas a túnica, dobrada e deixada sobre a mesa juntamente com um cálice de vinho e um pão repartido em doze pedaços de tamanhos iguais.
A muitas léguas dali, um homem de rosto comum vagava por uma estrada, acompanhado por Marias e Madalenas em um número de doze. Era preciso mais tempo para ficar entre os homens, para lhes oferecer a salvação. Havia ainda muito o que lhes ensinar, muitos milagres para realizar, muitas outras Madalenas para arrebanhar e doentes a curar, homens a salvar, antes que se lhes pudesse cobrar alguma coisa. Ofereceria aos homens o seu perdão, perdão que o pai não quis oferecer, mas que teria de aceitar. Entregaria aos homens suas palavras de amor, seus ensinamentos, sua mensagem de paz ao invés de seu sangue, relíquias sagradas e locais para adoração. Assim, abriria, de fato, o espaço para a liberdade dos homens e para a plena realização do amor divino. Acertaria as contas com o pai, pois sempre faltou aos deuses a compreensão da vontade e das necessidades dos homens. Faltou, sobretudo, compreender que nem todas as vidas acompanham os desígnios e profecias, que nem todas as histórias se escrevem e se cumprem por vaticínios e escrituras. Sempre se disse que mandar na própria casa é mais penoso e, portanto, só restava ao pai aprender essa sábia lição e se conformar com aquilo que lhe escapa ao controle, afinal, se nem todos os destinos se dão conforme os desígnios divinos, o que dirá o de seu próprio filho.