Intoxicado com dores
Dia de outono, mais um sábado apático, encarregado de inúmeros pensamentos e após uma noite complexa para o meu sono – não dormi bem. Pensamentos a mil, mesmo que sem motivo algum para se preocupar e pensar tanto, era como se tivesse inúmeras preocupações agravantes para meu ser. Ainda não eram 17 horas e eu não conseguia descansar. Desde às 6 da manhã acordado, com os olhos cansados e com o corpo fadigado, iniciava-se mais uma rotina conturbada. Compromisso logo cedo e meu corpo se esforçava para corresponder aos meus nervos. A cada passo, a sensação de querer simplesmente largar tudo e voltar para o meu santuário, apoiar a cabeça sob ele e voltar ao meu mundo profundo. Mantive-me firme e continuei, mesmo que com dificuldades. Não conseguia comer, muito menos beber água - café era meu aliado em dias assim. Meu estômago embrulhava como se estivesse empacotado e preparado para ser transportado para longe, assim como meus pensamentos – eu não conseguia manter o foco. Talvez eu sofresse sérias consequências com tudo isso, com a falta de concentração e a necessidade de dar tudo de mim. Será que seria o início de mais um sábado atormentado pela necessidade frustrante de escrever e me questionar sobre o que se tem passado no meu dia-a-dia, mas sendo incapaz de escrever sobre tudo o que eu tenho sentido? Buzinavan lá fora, parei de pensar tanto e acordei para o mundo. Passos firmes, mas exaustos, pela garagem até a porta de saída. Assim que cruzasse a porta, deveria parar de pensar tanto e, enfim, focar no que me convém. Já com o cinto de segurança atravessado ao meu corpo, torcendo para que segurasse-o, e um caminho longo me aguardava. Ao meu lado, meu fiel companheiro, que começava a falar sobre seus dias e seus relacionamentos conturbados. Risos eram trocados, conversas jogadas fora e inúmeros assuntos aleatórios. No rádio, nossas músicas favoritas tocavam e, naquele instante, eu parava de pensar tanto. Talvez eu pudesse me tranquilizar.
Enfim, chegamos. Cumprimentei todos que estavam por lá, comecei a pensar em como convencê-los que, se fizessem o que eu dizia, iríamos sair vitoriosos. Eles escutaram atentamente e, enfim, entramos no território de Guerra. O sol quente esquentava minha cabeça e o suor começava a escorrer no meu corpo; à minha frente, 7 seres movimentando-se como máquinas, coreografados como se estivessem em uma orquestra, mas comportavam-se como guerreiros – e como humanos. Haviam se passado 30 minutos e eles estavam exaustos: não podiam voltar atrás. Dando o sangue até que, na primeira chance clara, cortaram nossos braços e, outra vez, fraquejávamos. Tentávamos nos manter firmes somente com as pernas, mas eles aproveitaram e cortaram-nas. Caímos em campo e eu, por fora, declinava em mais um sábado conturbado. Talvez fosse hora de voltar para casa.
Meio-dia, em frente ao computador, fazendo inúmeras bobeiras. Era mais um sábado apático. O relógio girava e parecia não querer sair das 17 horas. Estava estagnado no Blues que tocava na televisão, acalmando o monstro na minha cabeça e afastando, aos poucos, a sombra de mim. Trocando mensagens, recebi o convite para sair de casa. Talvez não fosse o melhor dia para eu tentar contato com alguém: não me sentia bem. Minha cabeça estava relaxada com a voz de Gary BB Coleman, mas sabia que, se eu saísse, começaria a pensar tanto...
Insistindo tanto que decidi ir. Talvez me arrependesse depois, mas não podia mais voltar atrás: evitava frustrações.
Arrumei-me e saí. Saí em silêncio, escutando somente o barulho dos carros que atravessavam a rua e das vozes alheias em bares. Passaram-se 10 minutos, eis que meu destino estava logo a frente. Não sabia bem como reagir àquela sensação, era como se, mais uma vez, eu retornasse, como de costume, a um passado definitivamente esquecido e improvável. Por dentro, a sensação de ansiedade me domava, querendo que eu cometesse algum delito e me impedindo de manter a firmeza, o foco, a calma. Ela apareceu. Sorrindo, tranquila e relaxada, caminhou até mim e eu virei o corpo e mantive-me seguindo à passos curtos, com ela ao lado. Não estiquei a mão, nem o corpo, apenas deixei que ela seguisse a linha imaginária que meus olhos haviam traçados enquanto eu vinha. Não olhei para ela, enquanto ela se permitia a olhar e falar sobre algumas coisas que conversávamos. Talvez pudesse ser melhor e mais tranquilo do que eu esperava.
Entramos e sentamos um de frente ao outro. Meus olhos fugiam dos dela, não por precaução, mas por uma necessidade minha: jamais olhei nos olhos de quem me causa medo. Sem querer encará-la, eu permiti que meus pensamentos saíssem pela minha boca. Falei de todo o percurso da formação do meu ser, da forma como eu via tudo ao meu redor e de como eu me sentia atualmente. Infelizmente, falei demais para uma primeira vez. Falei tudo de mim e ela se surpreendeu. Eu não conversava com alguém sobre minha vida há mais de longos meses e decidi jogar para fora o que me atrapalhava. Assim que terminei, sem querer que ela perguntasse mais sobre mim, perguntei sobre ela. Ela foi justa e falou sobre tudo. Eu até que me senti aliviado, mas me senti culpado consigo: não falo da minha vida para ninguém. Enquanto falava, a minha tentativa de evitar olhá-la falhou. Somente ouvindo suas histórias, eu me sentia mal e me sentia injusto com ela. Não olhá-la fixamente talvez pudesse assustá-la mais do que aquela situação me assustava. Então, meus olhos pousaram nos dela e simplesmente travaram. Não pelo nervosismo, mas pela maneira como ela narrava seus fatos. Suas histórias entravam nos meus ouvidos e me faziam imaginar cada detalhe, por mais dolorosos que fossem. Eu sempre me culpei por tudo que passei, mas ela não era culpada pelo que ainda passava - todos ao seu redor a magoavam. Eu não reagi, apenas fiquei ali, paralisado, escutando cada detalhe e soltando um sorriso leve, pois não queria – e nunca quis – expressar o que eu sentia sobre tudo aquilo. Ela já não sorria tanto enquanto contava, somente quando eu sorria. Por dentro, eu me perguntava – por que ela se permitiu à tanto? -, mas quem era eu para julgar alguém que amava tanto aos outros em quem jurava confiar? Eu a entendia, por partes, sobre tudo o que acontecera. Eu queria esticar a mão a ela e dizer que ela não precisava suportar tudo isso sozinha, mas eu não expresso o que penso, nem o que sinto. Já se passavam 2 horas e eu ainda ouvia atentamente cada detalhe da vida dela, cada história e cada momento que ela passara. No entanto, era hora dela ir embora. Percorrendo o mesmo caminho que nos trouxera até lá, ela continuava falando sobre tudo. Dessa vez, depois que desviei a atenção, eu pude parar de olhá-la. Talvez eu estivesse errado quanto a tudo o que eu dissera sobre ela num passado distante e sobre tudo o que pensara saber sobre a vida. Talvez eu nunca devesse ter voltado a um passado tão profundo, oculto e esquecido.
O som da sua voz parou depois de longas horas. Eu evitava interrompê-la, preferia reparar nela, na forma como ela se sentia e como ela se expressava. Definitivamente eu estava alienado na ideia de vê-la ali, contando tudo o que se passara e, mesmo assim, mantendo-se firme como eu jamais conseguiria. Ela era mais forte do que eu havia imaginado, mesmo não a conhecendo mais – talvez eu nunca a tenha conhecido de verdade. Foi distraída pelo seu telefone e, depois disso, comecei a parar de repará-la de modo incisivo – eu tinha medo quando eu decidia em reparar nas pessoas. Ela tentou voltar a história, mas se perdia. Cada vez que ela se distraía, ela se perdia em suas histórias, o que era motivo de gargalhadas entre a gente. O relógio já avisava que era tarde. Mesmo sem segundas intenções e a carnalidade tão presente em meus dias, aquele encontro havia sido tão intenso quanto. A despedida foi a parte mais frustrante da noite para mim. Por mim, eu teria ficado até o dia seguinte, apenas ouvindo ela falar. Mesmo sendo impaciente, eu pacientemente a escutei e quase implorava para que ela se permitisse a falar sobre tudo cada vez mais. Intensidade em cada frase e jogada aos meus ouvidos rodeadas de sentimentos: foram por esses motivos que eu me fixei. Na despedida, talvez eu tenha feito errado. Talvez eu devesse tê-la apertado com meus braços até unir todos os seus cacos, mas não era o certo. Talvez eu acabasse passando do limite e, no abraço tão forte, eu acabaria destruindo de vez seu coração. Sempre fui tóxico, mas talvez eu pudesse ter sido atóxico a ela.
Jamais saberei...