900 dias - Prólogo
(Texto de minha autoria, parte do livro ''900'' que estou desenvolvendo)
Prólogo
Que som é esse? Ele sopra uniformemente em meus ouvidos.
Vento, sim, já faz tempo, mas lembro dele, lembro-me da época que não o temia, a última vez que o ouvi sem gelar a espinha, foi no meu último dia de paz.
Eu e minha irmã estávamos brincando no gramado atrás de casa perto das árvores, estava sol e um pouco quente, um clima bem agradável.
Foi um pequeno espaço de tempo em que não ouvíamos sobre os Nazistas e o Fuhrer, nos últimos tempos nossos pais só discutiam sobre isso, tentavam nos passar que estava tudo bem, mas sabíamos que estavam amedrontados, principalmente Lara, que mesmo sendo mais nova, entendia bem os sentimos dos mais velhos. Eu, o irmão do meio, era mais na dele na época, o total oposto de Igor, nosso irmão mais velho.
Igor era alto, forte e falastrão, mesmo pros seus 17 anos já era alto como nosso pai, ajudava ele a tempos na fabrica, vivia se gabando de estar sempre da mira dos olhares femininos, não era um mal rapaz, Deus sabe o quão responsável era quando tal situação era imposta.
Lara nossa irmã mais nova era bem esperta já pra idade, tinha 8 na época e o que mais amava era ficar desenhando em todo lugar que podia, coisa normal pra qualquer um em tal idade.
Éramos de uma família humilde, talvez seja clichê isso, mas a verdade é que na época, poucos tinham o prazer de desfrutar de tais prazeres, como ter a certeza de que todos os dias haveria um prato quente de comina na mesa. Sim, havia esse tipo de ‘’problema’’, mas nossos pais sempre se esforçaram muito para nos dar tudo do bom e do melhor.
Lara brincava com um graveto na terra, lembro que disse a ela que logo ela iria usar o graveto para desenhar na neve, pois o frio rapidamente se aproximava junto ao agoniante inverno.
Enfim, como disse esse provavelmente foi o nosso último dia de paz, nossa mãe nos chamou de dentro de casa, um pequeno prédio de dois andares no final da rua. – Se não vierem logo o pato irá sair voando pela janela, e ninguém vai comer- Corremos então para dentro, naquele dia em especial eu estava com mais fome, e mal conseguia me segurar para comer um saboroso pato assado no jantar, pato esse que Igor e nosso pai tinham matado no dia anterior.
O pato aparecia e desaparecia todos os dias, ficamos atrás do infeliz por semanas, até mesmo Lara saía pra ajudar, eu mais segurava uma espingarda direito, Igor sempre gozava da minha cara.
Entramos em casa, nem limpei o sapato direito e logo me sentei à mesa.
-Sabe que sua mãe vai lhe dar um esporro, não é? Olha a terra no chão, a mulher passou o dia varrendo o chão pra você sujar tudo- Disse o meu pai em um tom de brincadeira.
Lara puxou a cadeira pesada e sentou, um sorriso bobo estava estampado em sua cara, o tempo todo balançava suas curtas pernas que ainda não tocavam o chão.
-Que maravilha, pra onde foi todo o trabalho que tive hoje? Olhem esse chão, varri e cozinhei o dia inteiro, sabiam? – Disse minha mãe enfezada – As crianças estavam ansiosas, dê um tempo a elas, logo após o jantar eles vão limpar cada grão de terra do chão- Disse meu pai.
A porta da sala rapidamente abre e entra Igor, ainda com a roupa da fabrica, um macacão e uma camisa, se aproxima e agarra nossa mãe a levantando no ar com um forte abraço. –Eu mal demoro pra chegar e as coisas já saem de ordem? É duro ser o homem da casa ouviu dona Amélie?- falou auto meu irmão rindo do reclamar de nossa mãe. Com pequenos tapas em sua cabeça ela o fez a soltar e logo o mandou sentar a mesa, o jantar já estava chegando.
O cheiro dançou pelo ar e entrou em nossos narizes, era incrível, ela então chegou a mesa e colocou a travessa com o pato na nossa frente. Igor logo foi arrancando um pedaço, com um tapa na nuca nosso pai o impediu.
-Vamos rezar primeiro
Disse nosso pai já estendendo a mão a mim e meu irmão.
Todos dêmos as mãos e minha mãe então começou a falar.
-Hoje, sentados nessa mesa, com essa comida, sob este teto, sobre este chão, dentro desta casa, celebramos mais um dia, um dia em que nossa família está unida, saldável, e feliz, somos gratos sobre tudo isso a somente uma única pessoa, um pessoa que está aqui conosco, e sempre estará, Deus. Muito obrigado por esse momento, por mais um dia, e pelos que ainda virão amém.
Mãe queria tanto que suas palavras estivessem certas, na verdade, no então momento poderia até estar, porém, seria a última vez.
-Acorda, levanta! –Foi assim que fui acordado na manhã seguinte.
Meu pai a beira da minha cama me sacudindo como um saco de batatas.
-O que está acontecendo? –Perguntei, com medo de ouvir a resposta.
Sem me responder, foi me puxando para fora dos lençóis e do travesseiro, objetos esses que tanto sentiria falta pouco tempo depois. Quando me pus de pé, sem pensar corri a janela para olhar a rua, e lá estavam na rua, soldados, atirando uns nos outros, na época, não saberia diferenciar um lado do outro, mas aqueles de fardas longas e brasões vermelhos estampados nos braços eram os nazistas, que finalmente haviam chegado à Leningrado.
Minha casa ficava em uma parte mais afastada das entradas, mal sabia eu que um cerco estava sendo formado, e aqueles eram apenas respingos de uma grande onda que tentara afundar a cidade. Eu ouvia varias sequência de tiros e tiros, tanto de um lado quanto de outro, meu pai pegou em meu pulso e me puxou em direção à sala, lá estavam todos. Lara no colo de minha mãe, e Igor na janela, não parava de perguntar sobre as travas na porta do andar de baixo. Eu não entendia ao certo o que era aquilo, sonolento eu ainda tropeçava enquanto andava rapidamente até todos.
- O que está acontecendo? -São os Nazistas tentando entrar na cidade-respondeu Igor.
-Vamos até o porão, e pelo túnel vamos até a casa de Pietre-Disse meu pai tentando nos acalmar.
Pietre era um velho amigo dos tempos de guerra de meu pai, que sempre vivia lembrando-nos das vezes que um salvou o outro e o quão herói os dois eram. Porém, naquela época o velho herói tira virado apenas um beberrão com uma enorme pança e uma dezena de histórias repetidas para se contar, não era má pessoa, na verdade, depois de um tempo conhecendo-o, concordaria o quão agradável sua companhia era.
Pegamos as malas de emergência que outrora nossos pais haviam arrumado e descemos até o porão, cheguei lá primeiro, seguido dos outros, o ultimo a descer foi meu pai, juntamente com uma pequena vela para iluminar o lugar.
Era um porão velho com madeiras faltando no chão, algumas estantes com ferramentas velhas, teia nos cantos do teto e um bocado de coisas esquecidas pelo tempo, no canto da parede estava um tapume escondendo um pequeno buraco, buraco esse que usaríamos para escapar de casa, pois obviamente as ruas estavam impraticáveis.
Meu pai entrou à minha mãe a vela, e ela entrou primeiro, atrás dela foi Lara, depois Igor, eu e meu pai por último. Estava frio, e naquela hora ninguém falava muito, a terra húmida sujava minhas mãos e meu joelho, o que se ouvia apenas era nosso rastejar e os barulhos abafados de tiros que ecoavam da superfície. Naquela altura provavelmente estavam debaixo da rua, e a casa de Pietre ficava mais alguns metros do outro lado dela. Estávamos longe ainda.
Em um susto, Lara começou a chorar, alguém havia entrado em nossa casa –Fiquem todos quietos, Lara, fique quieta- Disse meu pai em um volume baixo como se quisesse gritar, porém seu alerta apenas pareceu piorar a situação, Lara então começou a chorar mais alto ainda querendo sair dali.
Minha mãe tentava a acalmar falando que já estávamos chegando, os sons de passos e de gritos de ordens começaram a ficar mais alto, quando olhei para trás entre a parede e o ombro de meu pai, vi no começo do túnel em meio a escuridão, luzes de lanterna, e então o pior aconteceu, fomos avistados, bom, pelo menos meu pai.
-Corram, vão na frente, eu alcanço vocês, vou atrasar eles um pouco –Disse meu sorrindo, como se fosse dar conta dos soldados sozinho.
-É o que? Pai, você ficou louco? São nazistas, o que acha que vão fazer? –Falou Igor como se fazer nosso pai ficar junto da gente naquele momento fosse seu maior desejo, e talvez fosse mesmo. Nada adiantou, eu estava atrás de Igor, então nada ele podia fazer.
Eu não entendia a língua dos soldados, porém, acredito que davam ordem para que quem estivesse no túnel saísse, já que foi essa a reação de meu pai, que antes de eu ir, tocou em minha perna olhou pra mim e disse –Seja forte, proteja, e não precise de proteção, você já é um homem, diga o meu mesmo ao seu irmão- Agachado e se virando pra trás disse -Eu te amo meu filho, até daqui a pouco- E com uma última olhada para mim, sorriu, com um daqueles sorrisos engraçados que costumava dar com os poucos dentes que lhe restavam na boca. Eu não sabia, mas aquela seria a última vez que veria meu pai.