Sandrinha
Eu tinha terminado mais uma garrafa de vinho tinto e não eram nem 10 da noite. Passara a tarde toda sobre o computador escrevendo qualquer coisa que me viesse a mente, fizesse sentido ou não. Eu tinha esse costume de acumular palavras no papel de vez em quando. Simplesmente porque era mais fácil organizá-las depois, sóbrio, do que tentar pô-las em ordem quando tinha uma ou duas garrafas de vinho na cabeça. Apesar disso eu não estava nem um pouco satisfeito com o resultado, tanto da escrita, quanto da bebedeira.
Larguei o computador de lado e tomei um banho para afastar o calor daquele fim de verão. Mesmo de noite, o mormaço era quase insuportável.
Saí do banheiro e me enxuguei displicentemente. Escovei os dentes e aparei alguns pelos salientes da barba. Talvez assim minha aparência fosse um pouco mais aceitável... Grande merda.
O banho frio trouxe um pouco da minha sobriedade de volta e me deixou ainda mais inquieto e entediado.
Me vesti, juntei minhas chaves, documento e carteira e saí de casa com uma garrafa de vinho tinto debaixo do braço.
Andei até a parada de ônibus e tomei o primeiro que apareceu.
Desci num terminal e tomei outro ônibus aleatoriamente. Fiquei com a cabeça recostada na janela, pensando no que ia fazer com o resto da noite e com a madrugada. Foi quando me dei conta que estava passando perto da praia.
Pedi parada e desci.
Fui andando por uma rua parcamente iluminada e por entre prédios cercados por grades e muros altos. Atravessei uma avenida e depois o calçadão. Só ai cheguei à faixa de areia. Fui andando até próximo à água até que ela tocasse os meus sapatos, mas sem deixar encharca-los.
Não havia lua à vista. E eu fiquei apreciando um céu salpicado de estrelas e com algumas nuvens alaranjadas.
Me deitei na areia e fiquei olhando para cima, procurando algo que explicasse o que eu estava fazendo ali.
Desenrosquei a garrafa e tomei um gole do meu vinho tentando não derramar o líquido sobre minha camisa.
Foi quando eu vi uma garota correr em direção ao mar e ficar com a água até os joelhos.
Ficou um tempo parada, talvez considerando se deveria entrar e depois voltou até a faixa de areia.
Só ai que ela me viu.
- Está tudo bem, moça? – perguntei
Ela olhou para mim, um tanto confusa... e veio devagar até o meu lado e falou.
- Você quer entrar no mar comigo?
- Não acho que seja uma boa idéia.
- Exatamente por isso. Estou cansada de ter que tomar sempre decisões acertadas.
- Acho que essa é uma cobrança universal.
- Pois não deveria ser. Eu tenho 19 anos. Acho que estou na idade de tomar péssimas decisões.
- É. Faz sentido. Mas não precisa necessariamente ser essa, não é?
Ela se sentou do meu lado e puxou cigarro e isqueiro do bolso do short. Acendeu e deu um trago bem profundo.
- Acho que você está certo. Quantos anos você tem?
- Bem mais do que você...
- Quantos?
- 31.
- Hum... Não parece.
Ficamos calados enquanto ela terminava de fumar.
- Quer um gole? – Falei, oferecendo-lhe a garrafa de vinho.
Ela pegou a garrafa, bebeu um pouco e me devolveu.
- Obrigada. Eu estava precisando disso.
- Mas por que você está nessa busca por decisões ruins hoje?
- Acho que só pra sair um pouco do roteiro.
- Entendi.
- E você? O que faz sozinho uma hora dessas aqui?
- Acho que pelo mesmo motivo que você.
- O que você faz da vida.
- Sou escritor, entre outras coisas.
- E sobre o que você escreve?
- Sobre mim. E sobre as pessoas que passam na minha vida.
- Deve ser legal... conseguir colocar ideias no papel.
- É uma tortura.
- Como assim?
- Na maioria das vezes é um sofrimento. Mas quando sai algo que faz sentido, é um tanto gratificante.
- Eu queria conseguir escrever da mesma forma que penso. Mas sempre saem coisas confusas. Por isso eu desisti.
- O que mais você gosta de fazer?
- Desenhar. Desenhar rostos. Rostos de pessoas desconhecidas.
- Parece interessante. Eu sou péssimo. Não consigo desenhar nem bonecos de palito.
Ela riu... e começou a desenhar um boneco na areia.
- Todo mundo consegue. Não é possível!
Ela se levantou e ficou me olhando de cima.
- O que mais você não sabe fazer?
- Dançar! Sou péssimo. Completamente inepto.
- Você tem cara de paradão mesmo.
Aquilo conseguiu me arrancar um sorriso inesperado, e me senti um pouco mais animado.
- Qual o seu nome, moça?
- Bem. Hoje, eu sou Sandrinha.
- Só hoje?
- Não. Quando eu quero sair só e uivar pra lua.
- Pois bem, Sandrinha. Meu nome é R.
- Só R.?
- Hoje sim! Amanhã talvez eu seja outra letra.
Ela riu, e me puxou pelo braço até a beira d´agua.
Caminhei hesitante, ao seu lado e entramos os dois quase até a cintura.
Primeiro, temi por meu celular, mas depois fui esquecendo que ele existia.
Sandrinha segurou minha mão e entrelaçamos os dedos e esperamos que uma onda viesse e nos derrubasse.
Mas a onda se demorou e eu puxei seu corpo contra o meu e colei meus lábios nos seus. Ela correspondeu com mais entusiasmo do que eu esperava no momento.
Quando nos afastamos ela sorriu e falou.
- O senhor é bem afoito, hein? Gostei.
- O senhor é o Satanaz! Pode me chamar pelo nome mesmo.
Ela riu e continuou.
- Ok, R. É que você é bem velhinho. Achei mais do que adequado te chamar de senhor.
Fiz uma careta e peguei ela no colo de sopetão. Ela se agarrou no meu pescoço e eu comecei a andar cada vez mais pra dentro do mar.
Ela não esperneou nem falou nada. Mas eu parei e comecei a voltar para a areia.
Nos sentamos novamente e esvaziamos toda a garrafa de vinho.
Quando o sol começou a surgir no horizonte, Sandrinha falou.
- Preciso ir agora. Eu estava com uns amigos em uma festa aqui perto, mas já deve estar acabando.
- Tudo bem. Também preciso voltar para casa.
Nos levantamos e seguimos em caminhos separados.
Subi num ônibus e voltei para casa, pensativo.
Dormiria um pouco e tornaria a encarar as páginas que tinha escrito no dia anterior, talvez agora com um pouco mais de inspiração.