Quimera

Na cidade as pessoas começam a andar mais depressa. Vendedores desarmam suas vendas o mais rápido que podem ou simplesmente as abandonam vazias. Músicos ambulantes guardam seus instrumentos, os fazendeiros que foram até lá para trocar ou vender mercadorias apressam-se de volta às carroças. Mulheres carregadas de compras arrastam as cianças pelas mãos. Estas últimas correm para acompanhar os largos passos das mães. A brisa amena que soprava há questão de minutos se transforma em fortes ventos que sacodem árvores, aarrancam estandartes, coberturas de carroças e casebres, principalmente daqueles em pior estado de conservação, assim como placas e letreiros. Os animais se assustam com os ruidosos trovões e relâmpagos que cortam os céus. Uma chuva de granizo, acompanhada de grossas e esparsas gotas de chuva cai. Todos procuram abrigo em mercearias, bares, oficinas ou qualquer porta que esteja aberta, e tenha uma cobertura sólida, disputados a peso de ouro. Algumas pessoas se aproveitam para vender bebidas que aqueçam: um frio intenso e inesperado é trazido com a chuva. Hans não é exceção e se apressa até a carroça para abrigar os animais da chuva de granizo. Não trouxera consigo nenhuma capa. Tem apenas a cobertura que protegia ferramentas e produtos, embora algo tenha mandado que levasse. Não dera ouvidos e agora imprecava consigo mesmo. Tentava acalmar os cavalos que estavam nervosos e assustados com a chuva. Situação que piorava a cada pancada de pedras de granizo no dorso dos animais. Caminha perdido entre outros fazendeiros retardatários que também procuravam um abrigo, embora aquela altura todos os lugares secos já estivessem ocupados. “Não pode piorar”, pensava, pesando as vantagens e desvantagens de cada possibilidade, de olho nas nuvens mais espessas ainda se formando no horizonte, completamente escuro, apesar de ainda ser metade da manhã. As copas das árvores mais altas estavam completamente encobertas em densas nuvens. Nunca vira nada parecido antes, a não ser nas mais horripilantes histórias que lhe contavam, e assim mesmo, tais nuvens eram a cargo da imaginação pueril. Puxa a coberta que cobria os materiais e produtos que levava na carroça. “Adolf ficará uma fera ao ver algumas coisas molhadas, mas antes esses produtos que perder algum desses cavalos!”, jogando em cima dos animais, que protegidos com a espessa coberta, imediatamente se acalmam. “Isso deve enganar um pouco, o suficiente para encontrar um lugar protegido ou essa chuva passar” - continuava pensando, otimista. Para si, resta-lhe como proteção seu chapéu de aba queimada. Resignado, coloca o chapéu, ajeitando o melhor que pode, sobe na carroça e toca em direção à saída em velocidade acelerada, quando algo cai a alguns metros à frente dos cavalos, obrigando Hans a parar abruptamente, quase virando a carroça. Salta do veículo, assustado e raivoso, e vê um emaranhado de roupas jogados numa poça de lama em frente às patas dos cavalos. Hans se abaixa para tirar o embrulho do caminho, e qual sua surpresa ao descobrir que o embrulho era na verdade uma criança que caíra à frente da carroça. Atônito, levanta o menino, que estava com o rosto enlameado e chorava bastante. Calma! Está tudo bem agora. Hans tenta acalmar a criança enquanto verifica se não há nenhum osso quebrado ou ferimento mais grave. Par alívio de Hans, o menino tem apenas alguns machucados provocados pela queda., além da roupa enlameada e rasgada pelo tombo e muitos hematomas. O que você estava fazendo, menino? Aonde estão seus pais? O menino nada responde. Apenas chora cada vez mais forte e mais alto, apertando-se em Hans, que levanta a criança no colo, acariciando-lhe os abelos para tentar acalmá-la, enquanto olha para um lado e e outro em busca dos responsáveis, quando vê um grupo de pessoas correndo em sua direção, vindos da entrada da cidade, assustadas, gritando e gistculando de forma incompreensível e desordenada a Hans e aos outros que se encontravam abrigados nas portas das casas. Hans volta-se para as casas e vê todas as pessoas que estavam espremidas à entrada disputando espaço para entrar nas casas a todo custo. Quando vira novamente em direção a multidão, esta passa por ele e dirige-se às casas, aumentando a confusão e o empurra-empurra nas estreitas portas. Uma nuvem de lama e água vem logo em seguida, acompanhada por barulhos de patas de cavalos, e antes que possa entender a situação, um homem a cavalo acerta-lhe um golpe de espada na lateral da cabeça. A criança, que até aquele momento estava no colo de Hans, é atirada a alguns metros à frente e pisoteada pelos cavalos que vinham logo atrás, enquanto Hans é atirado em direção a carroça, batendo a cabeça com força em uma das rodas, sem ouvir os gritos da criança, abafados pelo trote dos cavalos e gritaria dos homens. Ainda atordoado e sem saber ao certo o que lhe acertou, Hans senta-se com as costas apoiadas na roda. A cabeça doía e tudo rodava em uma velocidade frenética, que não permitiam a ele se levantar sem perder o equilíbrio. Passa a mão na área machucada, e sente um líquido denso e quente na mão. Olha para os dedos ensangüentados. A chuva diminuíra. O granizo havia parado de cair há um certo tempo. Os grosso pingos de chuva haviam dado lugar a uma chuva fina e intermitente. Hans sentia frio, e no pescoço, grossos pingos d’água. Olha para a camisa e vê o sangue que goteja de um corte em seu pescoço, na região atingida pelo golpe da espada, que se transforma gradativamente num grosso filete que jorra copiosamente. A cabeça parece girar mais rápido, e após um curto espaço de tempo é que Hans sente a dor provocada pelo golpe da espada e a batida na roda. Uma sono muito pesado seguido de uma enorme vontade de dormir toma conta de Hans, que luta para ficar acordado. Apoiando-se na carroça, e a muito custo consegue se levantar, e semi-ereto, percebe uma grande sombra cair sobr ele. Não consegue pensar em nada. Sente não ter mais forças pra movimentos bruscos, e a visão fica turva. Viara-se vagarosamente em direção a sombra, e de olhos semicerrados, tentando focar a vista, vê um homem montado em um cavalo. Aparenta ser, se não da mesma idade, pouquíssima coisa mais velho que ele, cabelos longos e barba por fazer, uando uma roupa estranha, que Hans não conseguia identriciar, que deduzia ser uma espécie de roupa de soldado muto antiga, que nunca vira antes. O cavalo carregava testeira, barda peitoral e bardas articuladas, como se estivesse pronto para uma luta. O cavaleiro segura em uma mão a espada, suja de sangue e o corpo do menino que Hans segurara há pouco, completamente destroçado em um monte de carne, ossos e lama esmigalhados e compactados pelo pisotear dos cavalos, na outra mão. Olhava para Hans com ar sério e olhar vazio e gélido. Sem desmontar do cavalo, aproxima-se de Hans, largando o corpo do menino sobre seus pés. Hans abaixa a cabeça e olha para a massa, agora espargida e inerte, estupefato e aflito. Sente vontade de chorar, gritar, avançar sobre o cavaleiro, esquecendo até das dores e ferimentos. Levanta os olhos com a ira que nunca jogara a ninguém, encara o cavaleiro, que devolve igual olhar a Hans, com um frio sorriso, que se abre em uma estrepitosa gargalhada de prazer e saciedade, enquanto lambe o sangue que escorria pelo fio da espada. Hans olha a cena enojado e revoltado. Nunca imaginou assistir aquilo. O cavaleiro, placidamente limpa a boca na manopla, aponta com a espada para o que foi uma vez o corpo de uma criança e em seguida, aponta para Hans. Você….não se reconhece, Hans? Hans olha para o corpo novamente, e nos destroços cranianos, a face infantil lhe causa uma estranha sensação de proximidade e similitude. Ele fica algum tempo observando os restos, e num hiato perceptivo, Hans, assustado, responde quase sem voz. Mas esse sou eu…fui eu! Não pdoe ser! Eu estou aqui! Antes que perguntasse qualquer coisa ou esboçasse qualquer tipo de reação de ataque ou defesa, é atingido por mais um golpe de espada, dessa vez com a parte não cortante, atingindo em cheio a região frontal de seu rosto, levando-o imediatamente ao chão. Sente o nariz dormente, a visão, já embaçada, fica ainda mais prejudicada. Sente o gosto de sangue nos lábios, e ao sentir um líquido quente acima dos lábios com partes mais grossas, sente imediatamente que o golpe havia quebrado-lhe o nariz. Você não me reconhece, Hans? Olhe bem pra mim… -fala o cavaleiro, sem saltar do animal. – Ora, meu amigo! Eu não posso acreditar que após tanto tempo juntos você não me conhece. Ora Hsn! Você me decepciona! Eu lhe conheço tão bem…acho que você ficou muito tempo com as lentes erradas, meu velho companheiro…nós nos encontraremos ainda, não se preocupe. Você não pode fugir de mim! Aonde você estiver eu estarei à espreita, aguardando o momento certo de aparecer. Você não precisa se preocupar. Eu lhe colocarei as lentes corretas, quando chegar a hora. Você não imagina o quão surpreso estou com você. Mas vejo que ainda há muito o que se fazer! Afinal, que diabos é você? De onde eu lhe conheço??! O que eu lhe fiz? Por que você está fazendo isso?! Ora essa, meu amigo! Você está fazendo tudo errado! –Impacienta-se o cavleiro – Em parte, você já me conhece, só não sabe me chamar, ou seria…invocar? Bem, sejá lá como você entenda. Eu apenas me considero….uma parte essencial em seu auxílio, meu companheiro! Pare de me chamar assim! Você não é meu companheiro! Nunca conheci ninguém que faria tal atrocidade com uma criança! Ora viva! Parece que ele não está de todo esquecido! Ele tem ira no coração! Parabéns! Você me surpreende… -e o cavaleiro novamente ri estrepitosamente, enquanto salta do cavalo e põe-se a andar em círculos. Ah, ahn. Não fui eu quem fez isso – e aponta para os destroços da criança – meu companheiro…ou deveria chamá-lo...meu mestre? Mas ao mesmo tempo que você me surpreende satisfatoriamente, você me desaponta! Ah joven Hans, jovem Hans, precisamos nos ver mais vezes…e isso não é uma promessa, é um fato, que você não terá como fugir, assim como eu não teria como, mesmo que eu quisesse! Mas esse cheiro de chuva e medo não é uma maravilha? Você não adora isso?! O cavaleiro se abaixa de frene para Hans, e ambos ficam olho a olho. O cavaleiro passa a mão sobre o monte de carne, e tira um punhado, levantando-se em seguida, andando novamente em círculos. Não! Se você me conhecesse mesmo, saberia que não! – responde Hans Você tem certeza??! Você pensa que não sabe. Meu Deus! Que raios é você afinal? –Exalta-se Hans, usando a pouca energia que lhe resta. O cavaleiro não esconde a irritação com Hans, e fecha o punho espremendo o punhado de carne e ossos, jogando furiosamente em direção a Hans, mas sem o intuito de acertá-lo. Ora! Ele tem parte nessa história também! Por causa dele também existo. E você está erado. Eu lhe conheço tão bem que sei do que você é capaz, meu velho amigo. Então me diga quem é você?? De onde você veio, monstro diabólico! Você está quase lá, meu amigo. Mas essa conversa está muto improdutiva, e minha paciência se esgotou. O cavaleiro sobe calmamente em seu cavalo, enquanto Hans grita palavras desconexas enquanto soca o ar, tentando reagir de alguma forma, com as poucas forças que lhe sobram. Ao ver o cavalo avançar sobre si, Hans se arrasta para baixo da carroça. Com todos os ferimentos, não é rápido o suficiente para evitar que o homem empine o cavalo sobre ele e solte o animal de forma que uma das patas atinja-lhe o rosto. Hans ouve apenas uma derradeira e irritante risada estrepitosa, entremeada pelo barulho de ossos estalados, seguido de um forte calor no rosto, proveniente de uma luz intensa e radiante que não sabe de onde vem, mas lhe parece reconfortante e agradável. No meio da luz vê uma figura feminina com um longo vestido dourado com detalhes prateados, assim como todos os ornamentos usados pela tal mulher. Não sente mais dores, frio ou medo. Os cortes e golpes de espada sumiram, e não encontra sinal deles, por mais que tateie o corpo. Olha novamente para a mulher, que não lhe parece estranha. Tem a nítida impressão de tê-la visto alguma vez. Não consegue se lembrar aonde, mas a impressão não lhe sai da cabeça. A luz parece ficar mais forte e obriga Hans a proteger os olhos com as mãos, e ao se aproximar dela, percebe que ela sorri gentilmente para ele, o que lhe faz instintivamente sorrir também. Percebe também que ela se aproxima, o que não lhe causa nenhuma reação: medo, intimidação, nada. A mulher pára próximo a ele, a distância de um braço esticado, e o brilho parece emanar dela, e não do ambiente onde se encontram. Hans não consegue deixar de ter a certeza de conhecê-la de algum lugar. Eu…eu.conheço você – murmura Eu sei.. Eu também conheço você. Responde a mulher, sorridente, para surpresa de Hans, enquanto estende-lhe o braço com a mão espalmada. Dessa vez Hans não fica tão assustado quanto a primeira vez que lhe falaram que o conheciam. Ele não se dá conta do que ela acabou de falar. Está inebriado, absorte em descobrir de onde a conhecia. Você…você é…a festa de Hellen! Você falou comigo na esta e desapareceu! Foi você! Quem é você?! A mulher nada responde. Apenas sorri, enquanto cobre com a mão espalmada o rosto de Hans, acaricia-lhe a fronte empurrando-lhe para trás. Hans sente-se cair em um abismo gigantesco. Enquanto cai, vê o que lhe parece uma plataforma, e deduz que era aonde estava todo aquele tempo, que fica cada vez mais afastada e menor, cada vez mais distante. Sente um tranco forte, que o faz cair da carroça, com a cabeça dolorida. Ainda meio zonzo olha para os lados e vê a cidade, a mesma cidade em que estava, com seu movimento normal: lojas abertas, céu ensolarado, terra seca, comerciantes barganhando e falando muito e com o habitual tom alto de voz, gritos, carroças e cavalos indo e vindo calmamente. Passa a mão no pescoço e não sente nada de estranho; nenhum ferimento ou marca. À entrada da cidade, ninguém ameaçador ou alguma pessoa com roupas estranhas em um cavalo de batalha. Finalmente passa a acreditar que tudo não passou de um sonho, de um terrível sonho e respira profunda e aliviadamente. Ainda em dúvidas, olha atentamente a carroça. Tudo estava como havia deixado antes de dormir. Confere os produtos, apronta os cavalos e segue para a saída, o que lhe causa apreensão. O e “se….” começa a tomar conta de sua imaginação. Afinal, “foi tão real…. Não é todo mundo que sonha estar sendo morto por um estranho”. Dá de ombros, procurando minimizar o sonho e espantar o medo. Aumenta a velocidade dos animais e sai da mesma forma que entrou, no início da manhã: tranqüilamente. Só uma coisa lhe intrigava: “Por que aquela mulher que vi uma vez apenas apareceu justamente nesse sonho? Quem é ela?” Mas não podia deixar de esquecer o cavaleiro com a conversa estranha. Dá de ombros e toca a carroça de volta a fazenda, agora, deixando as intrigas e deduções para trás.