Água sagrada 

    Imaginação e realidade se confundem nas lembranças. E o que é o real? E o que é o imaginado?
     No alto da árvore , imóvel, observa o lobo saciando a sede nas águas geladas do riacho que serpenteia sobre as pedras.À luz pouca do final de dia, o cenário tem reverberações do pôr do sol.
        Uma manhã, há muitos anos, dístraída pensava sobre as obrigações do dia, enquanto regava as plantas do jardim, na frente da casa. De repente surge, vinda sabe-se lá de onde, atrás da grade de ferro do portão , a estranha figura de um menino. Os cabelos  de tão loiros eram  quase brancos, lisos, caindo em topete sobre a testa. Trajava uma jaqueta preta, de tecido emborrachado, fechada até o pescoço, parecendo quente e inadequada para aquele dia de sol  . Com a cabeça um pouco inclinada, olhava para baixo como se não quisesse se mostrar por completo.Com uma voz baixa e neutra balbuciou "Água". Água não se nega a ningúem, nunca. Assim tinha sido ensinada, desde criança.Então ,disse a ele que esperasse um pouco."Ia lá dentro buscar  água do filtro".Ele fez que não com a cabeça e apontou para a mangueira . Ela regulou  o fluxo de água no bocal e passou para ele pelo vão da grade. O estranho menino bebeu um pouco  e devolveu a mangueira em silêncio. Ocupada em regular   novamente o fluxo da água para continuar a tarefa, distraiu-se dele por um instante.Ficou sem saber  se ele  havia subido a ladeira da rua lateral ou se seguira pela rua da frente da casa. Enfim... Nunca o vira  antes no bairro e nunca mais tornou a avistá-lo por ali. Sua mãe contava histórias sobre visitas de anjos.  Começou a achar  que  presenciara algo intrigante naquela manhã.
            Era uma noite quente de dezembro. Dentro do carro , aguardava o companheiro ,que entrara na loja de conveniência do posto de gasolina. Um funcionário, já de mochila às costas, passou uma corrente em volta do setor das bombas de combustível  e foi embora. Em seguida, um cachorro ,  caminhando  ao lado das bombas, parou e cheirou a torneira de água. Parecia cansado e ofegante. Num impulso , ela saiu do carro, pulou a corrente e , com cuidado para não assustar o cão, abriu um pouco a torneira. Formou-se uma poça de água no chão, onde ele bebeu avidamente. Depois seguiu seu caminho. Após fechar a torneira, voltou para o carro, com uma sensação suave de dever cumprido.
    Não, não me perguntem  se são cenas reais o que narrei! Não sei distinguir fatos de sonhos,de miragens.


Ilustração: Fotografia de Luiz Dias Fernandez