Já passava da meia noite.
     Como de costume, não dormia a essa hora. Um vulto disforme cruzou pelo quarto seguido de uma estranha brisa que tornava gélido todo o ambiente.
     O que viria depois talvez não devesse dizer. Mas tendo avultado a mente de nossa garota, talvez seja necessário.

     Um leve tremor se fez sentir pelas pernas a percorrer aquele corpo cansado. O quarto mantinha apenas a claridade das luzes externas que adentravam pela janela aberta. Ruídos de poucos carros se faziam ouvir ao longe competindo com os sons de seus pensamentos fluidos, em mais uma noite de insônia.
     Acobertada por um velho lençol de algodão, que sempre preferia usar, pôs depressa a perna que estava fora da cama sobre ela, como num ato contumaz de susto.
     No coração, sentira uma alternância significativa em seus batimentos, acompanhada por longas respirações que denotavam alguma mudança em seu estado.
— Pauline!
—Oi, já vou.
     Levantou depressa e seguiu até a porta a ver o que queria quem a chamava.
—Oi, que houve? Aconteceu alguma coisa?
Como estava ainda no quarto, repetiu um pouco mais alto ao seu amigo que dormia na sala naquele dia.
—Tom!? O que houve?
Como não houve resposta, seguiu pelo corredor até a sala escura e tocou de leve os pés de Tom, que se mantinha em silêncio.
—Tom!
—Hh. O quê?! Que horas são? Por que me acordar agora?
     Dê súbito, soube apenas se desculpar em meio àquela surpresa.
—Nada. Desculpe. Pensei em ter ouvido alguma coisa. Você estava dormindo?
— Você é a única pessoa que conheço que acorda alguém e a seguir, pergunta se ela estava dormindo. Pois estava, mas agora não estou. E se quer saber, gostaria de continuar dormindo, se você permitir.
—Ok. Desculpe. Eu só pensei ter ouvido alguma coisa.
—Tá bom, Pauline. Tente dormir e depois conversamos.
— Boa noite, Tom. Qualquer coisa, pode me chamar.
 
                                    
     Agora vos digo que o porvir talvez não importasse dizer. Mas tendo avultado a mente de nossa garota, talvez seja necessário... 
                                 
 
—Nossa, que sonho estranho. Antes, devo dizer: Bom dia!
—Uh, que horas são, Tom?
—Quase 10h00! Eu teria levantado mais cedo se você não tivesse me acordado no meio da noite e me impedido de dormir direto...
—Ah, poxa. Achei que fosse sonho, rsrs. Desculpe de novo então.
—Sonho foi o disparate que tive com você, minha querida. Você nem imagina o que estávamos fazendo no meu sonho...Acho bom você nem saber.
—Rsrsrs. Nossa, mas seria algo indecente? Ou talvez algo cruel?
—Depende do que você entenda por indecente e cruel, minha querida.
—Tom, fiquei curiosa e agora você tem que me contar, antes que venha a se esquecer. Aproveite que as coisas estão aí fresquinhas em sua mente e conta o que você sonhou, vai.
—Então façamos uma troca. Eu te conto o meu sonho se você me contar outra coisa.
—Fechado. Pode começar a contar.
     Pauline certamente imaginava que seu amigo pediria a ela para que trocassem sonhos, os dele pelos dela, possivelmente. Talvez eu não deva me adiantar, mas se o leitor também pensou isso, pode ser que tenham ambos se enganado...
 
—Inacreditável!
—Não, meu bem. Perfeitamente crível, afinal, estamos falando de sonhos, de coisas que não seguem muito uma lógica. Ao menos eu não sei qual lógica essas balbúrdias todas teriam.
—A lógica do insano, só se for. Imagine eu te pedindo para se passar por meu namorado para testar a paciência da sua namorada (de quem eu na verdade estaria a fim) e você descobriria que eu e ela teríamos um caso quando eu recusasse fazer isso e então armaria um flagrante pra nós. Nossa, tão doido quanto confuso isso mesmo. Ainda bem que você não tem namorada, não é mesmo, rsrsr.
—Existem mais mistérios entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia, minha cara.
—Eu adoro quando você faz essas paráfrases dos célebres que eu amo!
—Pois Shakespeare poderia saber muito bem a que me refiro e quem sabe estes sonhos não possam se referir a algum provável futuro, não é mesmo?
—Bom, o dia e o tempo urgem. Vamos nos aprontar e seguir?
—Certamente, Pauline. Mas não se esqueça de que você me deve uma, hein.
—Mas eu não me lembro do que eu sonhei, rsrs. Verdade mesmo. Quando eu sonhar de novo eu te conto, está bem?
—Tudo bem. Será bom ouvir teus sonhos também, mas não é isso que você me deve como troca de nosso acordo. Saiba disso.
—Ah? Como assim?
—Vamos tomar um café e conversamos sobre isso depois....


     Era quase 11h00 e o café ainda seria providenciado.
Naquele apartamento frio e mediano estavam Tom e Pauline, a preparar torradas com queijo e geleia, além de uma deliciosa vitamina de frutas para o desjejum que compensaria o almoço que não teriam.


     Ao término do lanche matinal, seguiriam juntos para a universidade, na qual passavam a maior parte do tempo entre livros, contato social com outros estudantes, pesquisas, palestras, aulas, grupos de estudo e as festividades ocasionais.

     Pauline cursava o 3º semestre do curso de Psicologia e Tom estava no 1º semestre de sua segunda graduação. Já era formado em Filosofia e agora se aventurava pela psique humana como quem quisera desbravar um mundo vasto e inexplorado. Ambos tinham muito em comum, como o gosto pela Literatura e por filmes de drama e terror.

     Talvez eu deva contar um pouco sobre como eles se conheceram.
     Foi numa tarde sem graça, com dia cinza e frio, como todos os dias sem graça costumam ser.


     Pauline nunca se interessou por trotes e não participou de nenhum, mas no dia em que procedia a sua rematrícula para o 3º semestre, estava acontecendo algo que lhe chamou a atenção e quis ver mais de perto, afinal, o comportamento humano alheio ao seu muito lhe atraia como forma de pesquisa.

     Havia apenas três calouros a se submeter a uma conduta vexatória. Um deles estava semi nu, apenas com uma sunga vermelha apertada a delinear seu órgão encolhido pelo frio e pela vergonha. Aparentando cerca de 20 anos, o rapaz se encontrava no meio da praça da estátua central da universidade. Ele repetia palavras de ordem e tinha como missão fazer com que o maior número de pessoas ouvisse seu discurso e respondessem ser rir. Tarefa tanto difícil por se tratar de temas tabus como a homossexualidade.
     O sujeito gritava: “...Porque eu sou gay mesmo e apenas por isso devem todos me escutar e me olhar e responder o que eu queira saber. Por que traria mais prazer a língua de uma mulher que a de um homem, se ambas são feitas da mesma matéria? Como você saberia se quem te chupasse fosse um homem se estivesse de olhos vendados sem ver ao parceiro?”


       Alguns passavam e simplesmente ignoravam aquilo tudo, como quem quisesse propositalmente evitar tal constrangimento. Outros se achegavam e burlavam o rapaz, o chamando de belinha, tigresa, e coisas assim. Ao redor, estavam os incitadores e idealizadores da coisa toda, a espera do término do desafio. Somente eles determinariam a duração do que se sucedia ali.
    Poucos metros a frente, estava um outro rapaz, aparentando ser mais velho que o de sunga. Enrolado num lençol branco, o rapaz tinha que fazer com que alguém questionasse se estava nu ou não, o que ele vestia por baixo. Ele tinha que despertar a curiosidade de alguém para que quisessem descobrir se estava ou não nu. Aparentemente coisa simples, só que na prática, algo mais complicado. Quem iria se interessar por saber se estava ou não nu, uma vez que estando coberto pelo lençol, este fato não faria diferença?

        E por fim, próximo a ele estava um moço aparentando uns 25 anos, vestido de mulher, parado como uma estátua sem dizer palavra alguma. Tinha como incumbência resistir as investidas dos que passassem sem responder a nada, nem se mexer. Particularmente, achei isso mais interessante e difícil, pois poderia fazê-lo se sentir como muitas mulheres se sentem quando são incomodadas e o quão difícil é permanecer assim sem poder reagir....
 
       Diante daquela praça movimentada, Pauline se deteve a observar por alguns momentos aquela coisa toda. Talvez tivesse pensado o que teriam inventado a ela caso aderisse a tal prática de trotes meses atrás. Mas eu não quis explorar sua mente naquele instante, de modo que nem eu sei ao certo o que ela pensou. Mas posso descrever suas ações.
      Foi se aproximando do rapaz de salto alto, que parado transparecia a silhueta adornada de seu corpo, com uma meia calça preta abaixo de uma mini saia prateada. Pauline chegou bem próximo de seu rosto e sem mencionar palavra alguma permaneceu por alguns instantes a olhar fixamente para aquele rapaz, que mirava os olhos nela quase sem piscar, para não perder o desafio.
     Com aquela atitude incomum, os demais voltaram a atenção para ela que aproximava cada vez mais seu rosto da face do rapaz, lentamente. Ele por sua vez, permanecia imóvel, porém, era já evidente o tremor que percorria todo o seu corpo.
    Quando por fim ela cobriu toda a sua visão com a expressão séria de seu rosto, pronunciou lentamente a ele a seguinte frase: “Eu- te- amo!”.
     Foi o suficiente para fazê-lo dar um passo atrás, num ato quase automático no qual repleto daquele hálito estranho e invasivo, quis se esquivar.
     Ela permaneceu imóvel a espera que ele retomasse a posição, mas isso não ocorreu, porque foi seguindo um passo após o outro e já começaram a gritar:  “Se ferrou!” ao calouro. Seu desafio estava terminado e ele perderá. Teria de pagar 100 flexões ali mesmo.


     A seguir, Pauline se aproximou do rapaz de lençol e disse a ele “Eu sei como vc está por baixo!” num tom sério e expressivo. O rapaz então a desafiou indagando como ela saberia. Ela simplesmente disse “Eu vi”. Foi o suficiente para que se instaurasse burburinhos diversos e começassem a manda-lo pagar flexões...O rapaz disse aliviado, “eu não aguentava mais isso mesmo” ...
     E antes de prosseguir até o saguão principal, Pauline se deteve no outro calouro e disse: ”Você tem razão. E isso tudo não tem a menor graça. Os rapazes ao lado deles, a essa altura gritavam extasiados e diziam coisas como “Acabou. Já foi. Fecho! Vamos, que você vai comandar as flexões, rapaz, você conseguiu!”
Ao que tudo indicava, este rapaz teria tido algum êxito maior no desafio proposto sobre os demais que sucumbiram à presença daquela moça peculiar.
     Pauline seguiu para o saguão e deteve um momento de leitura antes de seguir a secretaria e resolver as pendências de sua rematrícula.
Ao retornar por ali, cerca de uma hora e meia depois, encontrou o rapaz que venceu o desafio, com o corpo todo pintado, e ele veio ao seu encontro e perguntou:
—Você disse que eu tinha razão. Mas a respeito de quê? Eu disse tantas coisas...
—Você tinha razão em tudo o que disse. Não preciso especificar nada.
—Mas como assim?
—Eu não sei bem o que você disse, mas o que quer que tenha dito, foi razoável e justificável pela situação em que você estava.
—Mas por causa da situação eu posso falar qualquer besteira e fica certo?
—Não, não sei se fica certo ou não, sei que é razoável. O momento te acoberta de razão e justifica seus atos.
—Nossa garota, além de bonita você é filósofa também, hein. Adoro pessoas inteligentes.
—É razoável. Pelo meio em que você está, cheio de pessoas babacas, é razoável que você admire qualquer coisa que seja diferente disso.
—Nossa, você sempre tem resposta pra tudo! Adorei você, sério mesmo. Eu estudei Filosofia, por isso que eu comentei. Agora vou tentar Psicologia e vou pular algumas matérias que já tenha cursado.
Me fala ao menos o seu nome, me apresenta as coisas por aqui. Me tira desse antro de babacas.
—Você escolheu participar disso. Você se submeteu porque quis. Por que eu haveria de te ajudar com qualquer coisa que você não precise e achar que possa precisar?
—Minha Nossa Senhora!!! Agora eu gamei de vez! Me desculpa moça, mas a cada coisa que você fala, mais eu fico envolvido por você. Eu não quero perder a chance de sermos amigos. Por favor, agora estou te pedindo. Me fale seu nome e permita te conhecer melhor. Quero que você me conheça melhor também pra tirar essa impressão babaca que tenha ficado de mim. Eu não sou esse babaca que aparento ser.
       Finalmente, pude notar um sorriso acanhado ser desferido dos lábios de Pauline, e creio que aquele rapaz empolgado também tenha notado isso.
—Eu me chamo Pauline. Estudo aqui há um ano. Faço Psicologia e então, vamos estudar no mesmo prédio, e talvez tenhamos alguns professores incomum.
—Que legal! Nossa, muito legal mesmo! Você é um anjo (perdão pela expressão) que caiu do céu! Você pode me passar muitas dicas. Eu sou um bom aprendiz, gosto de saber das coisas, experimentar, conhecer. Por isso mesmo que aceitei participar do trote. Queria saber como é estar desse lado, porque na outra graduação eu não participei e queria saber se minha visão a respeito dessa prática poderia mudar se eu participasse.
— Interessante...
—Tom, pode me chamar de Tom.
—Okay. Interessante, Tom. Mas só Tom?
—Na verdade é Tomaz, mas eu já fui tão zuado com esse nome que prefiro que me chamem só de Tom.
—Entendi. E você mora aqui perto?
—Bom, eu tenho que me mudar pra cá já que passei pra essa faculdade. Eu havia prestado vestibular para duas e minha vaga saiu pra cá. Eu morava no interior, mas cheguei aqui há duas semanas. Estou procurando lugar pra dividir, pra alugar. Se você souber de alguma coisa me fale, porque está ficando caro pagar a pousada.
—Eu vou passar meu contato a você, então e você pode me passar o seu. Se eu souber de alguma coisa eu aviso. Sempre tem estudantes querendo dividir despesas por aqui perto.



E quando eventualmente calhavam de estar na mesma festa na universidade, por vezes ela o levava pra casa para dormir no seu sofá até se recuperar. Mas uma vez foi ele quem fez isso com ela. Ele a levou para casa e ficou pagiando seu sono, de modo incrivelmente respeitoso, após ela ter tomado quase um litro de Martine e várias doses de vinho tinto. Se tornaram de fato bons parceiros. Eu admiro amizades assim.
 
     Apesar disso, estes dias foram responsáveis pela grande proximidade que os dois tiveram e Tom passou a ser o único amigo, ou o mais chegado, digamos assim, de nossa querida Pauline. Ela por sua vez, era única pra ele. Tom a colocava num pedestal. Parecia mesmo que eles já se conheciam há um tempão. Falavam de tudo, sobre livros, sobre bandas, sobre Filosofia, política, sobre história, sobre filmes e séries, sobre os professores, sobre parte de suas vidas e de suas respectivas famílias. Ou seja, tudo o que constitui matéria-prima para fomentar uma bela amizade.
    Tom dormiu por poucas noites no apartamento, acho mesmo que foi por uma semana, até que conseguisse dividir com um local com o Cléber, que morava quase em frente. O Cleber era um rapaz e segundo as impressões de Pauline e de Tom, não pegava bem eles dividirem apartamento assim, um rapaz e uma moça, porque certamente daria o que falar. Ela preferia dividir com garotas e ele com rapazes, a não ser que a garota fosse sua namorada, o que ali não era o caso.
       Particularmente eu achei isso tanto precipitado e arriscado, mas compreendo que algumas coisas na vida envolvem risco e que talvez, essas coisas sejam as mais significativas.
     E foi que no dia seguinte, o Tom telefonou pra ela e a conversa se estendeu tanto ao telefone, que ao final ela o convidou a posar na casa dela, por alguns dias, até que arrumasse um local.
          E com isso, já fazia mais de um mês que Pauline estava vivendo sozinha no seu apartamento. Ela tinha muita cautela em procurar alguém para dividir as despesas, pois apesar de necessitar desse apoio, não queria arrumar ainda mais problemas colocando qualquer pessoa a dividir o teto com ela. Eu encaro isso como uma atitude prudente da parte dessa moça. Como eu admiro a Pauline!
      Eu soube que eles não se davam bem, mas para não dar o braço a torcer e não deixar isso transparecer, Ana permanecia com ele como se tudo fosse uma maravilha. Ela zelava muito da aparência....
     Mas Ana morou junto com Pauline por mais de seis meses. Se tornaram amigas, confidentes mesmo, eu diria. Talvez Ana ainda estivesse morando com ela não fosse ter aparecido aquele namorado chato que a convenceu a ir morar com ele.          
    A outra colega se chamava Ana Clara e veio dividir o apartamento dias antes da Carla tê-lo deixado, de modo que por cerca de uma semana, as três viveram ali, e muita discórdia se sucedeu.
Nem preciso dizer que a pulseira jamais apareceu...
—Pode deixar. Se eu achar eu guardo.
—Se você encontrar por aí então, você guarda pra mim que é minha tá?
—Pode deixar. Se eu achar eu guardo.
     Nem preciso dizer que a pulseira jamais apareceu...

   A outra colega se chamava Ana Clara e veio dividir o apartamento dias antes da Carla tê-lo deixado, de modo que por cerca de uma semana, as três viveram ali, e muita discórdia se sucedeu.
     Mas Ana morou junto com Pauline por mais de seis meses. Se tornaram amigas, confidentes mesmo, eu diria. Talvez Ana ainda estivesse morando com ela não fosse ter aparecido aquele namorado chato que a convenceu a ir morar com ele.
       Eu soube que eles não se davam bem, mas para não dar o braço a torcer e não deixar isso transparecer, Ana permanecia com ele como se tudo fosse uma maravilha. Ela zelava muito da aparência....
      E com isso, já fazia mais de um mês que Pauline estava vivendo sozinha no seu apartamento. Ela tinha muita cautela em procurar alguém para dividir as despesas, pois apesar de necessitar desse apoio, não queria arrumar ainda mais problemas colocando qualquer pessoa a dividir o teto com ela. Eu encaro isso como uma atitude prudente da parte dessa moça. Como eu admiro a Pauline!
     E foi que no dia seguinte, o Tom telefonou pra ela e a conversa se estendeu tanto ao telefone, que ao final ela o convidou a posar na casa dela, por alguns dias, até que arrumasse um local.
      Particularmente eu achei isso tanto precipitado e arriscado, mas compreendo que algumas coisas na vida envolvem risco e que talvez, essas coisas sejam as mais significativas.
 Tom dormiu por poucas noites no apartamento, acho mesmo que foi menos de uma semana, até que conseguisse dividir com o Cléber, que morava quase em frente. O Cleber era um rapaz e segundo as impressões de Pauline e de Tom, não pegava bem eles dividirem apartamento assim, um rapaz e uma moça, porque certamente daria o que falar. Ela preferia dividir com garotas e ele com rapazes, a não ser que a garota fosse sua namorada, o que ali não era o caso.
     Apesar disso, estes dias foram responsáveis pela grande proximidade que os dois tiveram e Tom passou a ser o único amigo, ou o mais chegado, digamos assim, de nossa querida Pauline. Ela por sua vez, era única pra ele. Tom a colocava num pedestal. Parecia mesmo que eles já se conheciam há um tempão. Falavam de tudo, sobre livros, sobre bandas, sobre Filosofia, política, sobre história, sobre filmes e séries, sobre os professores, sobre parte de suas vidas e de suas respectivas famílias. Ou seja, tudo o que constitui matéria-prima para fomentar uma bela amizade.
 
     E quando eventualmente calhavam de estar na mesma festa na universidade, por vezes ela o levava pra casa para dormir no seu sofá até se recuperar. Mas uma vez foi ele quem fez isso com ela. Ele a levou para casa e ficou pagiando seu sono, de modo incrivelmente respeitoso, após ela ter tomado quase um litro de Martine e várias doses de vinho tinto. Se tornaram de fato bons parceiros. Eu admiro amizades assim.

     O que quer que tenha sido essa deixa que fiz, deixe que eu fale um pouco mais do que sei a respeito desse sujeito, que não é muito.

     Tomaz era filho único. Apesar de aparentar aqueles 20 anos que eu mencionei, ele já tinha quase trinta. Era um sujeito interessante, mas muito misterioso. Ao que me parece, era daqueles que por mais que falava de si, nunca falava sobre ele de fato, e mais se esquivava que se mostrava. Ele é um sujeito que me inquieta e que tento compreender melhor, pois se eu não for capaz disto, certamente não poderei fazer com que o entendam também.
     Sei que ele teve uma namorada com quem quase se casou.      Após a decepção amorosa, cursou Filosofia e mergulhou na coisa de tal forma que passou a ter explicação para tudo. Ele era um questionador e adepto da maiêutica de Sócrates. Acho que exatamente por isso tenha se interessado tanto pela nossa garota Pauline, pois o modo como ela o indagou quando o conheceu, fez alusão à Filosofia que tanto ele exaltava.
 
Ele era um rapaz interessante, ao menos sob minha perspectiva. Na verdade, eu sei que Pauline também pensava assim.
     Na primeira noite em que ele dormiu em seu apartamento, eles assistiram a um filme muito muito bacana, e poderia até citar caso eu me lembrasse do nome. Era um filme filmado em película de desenho, que abordava a temática de diversas correntes filosóficas e quase ninguém que o tenha assistido chegava a mesma conclusão. Um enredo aberto que eu diria que dava o que falar.
     E deu mesmo. Após o filme debateram sobre suas impressões e quando concordaram com a cena da mulher divagando na cama, eles se entreolharam.
 
—Finalmente, Pauline!
— Eu que o diga! Até que enfim você entendeu isso.
—Não, você só entendeu isso. O resto você ainda precisa digerir, minha amiga.
 —Olha, não vamos varar a noite discutindo, não é mesmo. Você tem seu ponto de vista e eu tenho o meu e que seja assim.
—Certo, eu não gosto de estipular concordâncias sempre, pode acreditar. Acho que aprendemos muito mais com as discussões e com as divergências do que com aquilo que nos é facilmente assimilado e satisfatório.
—Nossa, Tom. Não existe nada que você fale que não tenha um cunho filosófico!?
—Eu vou concordar contigo de novo, Pauline, mas dessa vez é pra dizer que com você é a mesma coisa. Eu acho que tudo o que você fala induz a uma reflexão. Nada deve ser tão desproposital, talvez.
—Então, vamos discordar novamente. Muito do que eu falo é por falar, nem tudo é cem porcento racionalizado.
—Não tenho como saber isso, não é mesmo Pauline. Sei que eu adoro essas conversas profundas que a gente tem travado. Mas onde é que eu vou dormir?
—Pode ficar aqui mesmo no sofá. Eu não tenho colhão reserva aqui e só tenho um quarto. Eu dividia um beliche no quarto com a Ana Clara. Depois que ela saiu eu troquei a cama e comprei uma cama box, que é mais confortável. Você pode ficar no sofá que também não é ruim.
— Certo. Eu não tenho cerimônias. Eu dormiria até no chão se fosse preciso.
 
— Então está bem. Vou trazer a colcha e a seguir vou me deitar porque estou cansada. Espero que hoje eu consiga dormir logo.
— Você tem insônia?
— Ah, tenho. Eu não consigo dormir a noite, e durante o dia fico muito indisposta.
— E desde quando isso? Você sabe qual é a causa da sua insônia?
— Olha, eu não sei. Eu me lembro que desde muito pequena eu não conseguia dormir a noite, eu tinha medo de dormir.
— Talvez a resposta esteja ai, amiga. Você se lembra de que você tinha medo?
— Rsrsrs. Se eu falar você vai dar risada....
— Que bom, eu gosto de rir. Pode falar.
— Eu tinha medo do Freddy  Krueger. Eu assisti a um filme dele certa vez e era tarde da noite, imediatamente após o filme eu peguei no sono e foi tão profundo! Como a última coisa que eu havia visto era aquilo, certamente as imagens influenciaram minha mente e sonhei com o Freddy e não conseguia acordar. Uma cena muito parecida com a que vi no filme estava acontecendo comigo e eu fiquei com dúvidas em saber se estava ou não tendo um pesadelo, ou se aquilo poderia de alguma forma ser real.
— Nossa, amiga. Isso é compreensível. Penso que muitas crianças devam ter sonhado com esse personagem.
— Mas até hoje esse seria o seu medo?

     Naquele instante o semblante de Pauline apresentou uma perceptível mudança. Baixando mais a voz ela prosseguiu:
 
—Provavelmente não. Mas eu não sei. Melhor eu tentar dormir porque está muito tarde.

     Talvez eu não devesse compartilhar com vocês algumas coisas que considero íntimas de nossa garota. Mas ela não precisa necessariamente saber que tais coisas foram compartilhadas. Também não tivemos nenhum pacto de confidência que me impedisse de relatar o que sucedia.


     Algumas coisas particularmente interessantes ocorriam naquele local (não sei se antes era assim). Sempre que observei Pauline a dormir naquele seu quarto, o ambiente era gélido e escuro. Apesar de manter uma lamparina na cabeceira ao lado de sua cama, a luz era muito fraca e por vezes, se apagava quando ela dormia, talvez por mal contato na fiação. Como dizia o Tom, há muitos mistérios entre o céu e a Terra....E entre o estado de vigília de Pauline também.
     Na primeira noite em que Tom dormiu lá, houve apenas um pequeno incidente que julguei estranho. O despertador não despertou. Nem o dele e nem o dela.  Vocês poderiam pensar que o sono profundo não tenha permitido que ouvissem o alarme, mas estou a dizer que não houve alarme, nenhum som sequer, e nem mesmo os pássaros cantaram ao despontar daquele dia se bem me lembro agora. Me lembro de ter achado isso estranho, mas nem tanto a ponto de me encafifar, pois muitas outras coisas ocorreram que me deixaram verdadeiramente em consternação.

Retomemos aos momentos mais recentes....
 
Cleber esbarrou em Ana Clara propositalmente. De súbito, a jovem lhe deu um empurrão e chamou sua atenção.
—Ei, meu. Qual é! Você não tá me enxergando, não!
— Desculpa, moça. Ah, você é a amiga da Pauline, não é! Não lembra de mim? Eu moro quase na frente de onde você morava lá com ela. Sou o Cleber, da ADM.
—Nem adianta que estou irritada com você. Não adianta desconversar. Você me empurrou e me machucou, sabia!
— Desculpa novamente. Não foi minha intenção.
Mas você não se lembra de mim?
 
—Eu sei quem é você. E já vou avisando que não gosto dos carinhas folgados da ADM.
—Nossa, quanto preconceito!
Nada, ao menos aqui á é conceito mesmo. Vocês são todos uns filhinhos de papai, babacas, que se acham melhores que os outros, metidos a ser empresários e querem que todos sejam seus escravos.
—Calma lá, chica. Você está de TPM e eu até entendo, mas...
--Calma você! Eu não te dou o direito de falar assim comigo!
 
A discussão prosseguiu em tom cada vez mais alto, e com isso, chamou a atenção de algumas pessoas. Pauline reconheceu a voz de sua amiga e foi ao seu encontro.
— O que está acontecendo aqui, amiga! Como você está? Cadê é Dude?
-—Boa tarde pra você também, Pauline. Adentrou o Cleber de modo invasivo.
—OI, Cleber. Como vai. Eu estou querendo conversar com minha amiga, se você nos der licença ótimo. Se não der, eu me retiro com ela daqui e você permaneça nesse espaço.
—Nossa, já ouvi dizer que quando uma mulher está de TPM todas ficam ao mesmo tempo em solidariedade, mas agora estou constatando. Hoje vocês não estão nada doces.
— Mais alguma coisa que você disser que eu não gostar do teor, e tomarei outras providências. Nem queira saber quais são.
—Tudo bem, vou saindo e deixo vocês conversarem. Não precisam se estressar mais.
 
A contragosto, Cleber seguiu rumo a lanchonete. Logo mais teria aula de Estatística e com uma professora que já imaginava estar de TPM também.
—Essas mulheres! E ainda dizem que não mudam nada. O clima é todo feito por elas, se é um Paraíso ou se é um inferno, não é colega.
 
Indagou ao rapaz que atendia no balcão da lanchonete que apenas assentiu com a cabeça de modo quase involuntário.
 
As amigas puderam conversar com a sós.
 
—Olha, Ana, faz um tempinho, hein que a gente não se vê. Você nunca mais me procurou. O que aconteceu? Você está bem com o Dude?
— Estou com ele, mas acho que não estamos bem. Acontece que temos muitos altos e baixos na vida.
— Sim, compreendo, mas a que você se refere quando diz isso? O que está acontecendo com você? Pode se abrir comigo, você sabe.

 Aquilo era tudo que Ana precisava ouvir. Tão logo se sentiu acalentada as lágrimas desabaram de seu rosto de modo incontido, e seguiram para um canto mais reservado para que pudessem conversar.
—Você não quer ir pra casa? Vamos conversar lá. Você me fala o que está acontecendo.
—Não, na sua casa não!
—Ana Clara foi tão incisiva, que deixou Pauline sem jeito.
—Tudo bem, me desculpe. Mas por que você não quer ir em casa? Você não quer ou não pode ir lá?
—Pauline, agradeço seu apoio, mas tenho que ir.
—Mas que apoio, eu só lhe dei um abraço! Você não conversou nada comigo! Me diga o que está acontecendo. Quero muito poder ajuda-la se estiver ao meu alcance.
—Você não pode me ajudar. Mas se ficar insistindo ainda pode piorar mais. Eu preciso ir.
       Ana Clara seguiu em frente deixando todas as dúvidas na mente de Pauline. “O que ela estaria fazendo ali, se já estava com a matrícula trancada e naquele semestre não estava estudando? Por que ela estava discutindo com o Cleber? O que teria acontecido entre ela e o Dude? Por que ele não estava ali com ela?”
      Todas essas indagações passaram pela mente de nossa enfática garota, mas não  conseguiu conjecturar nenhuma reposta naquele instante.

     Talvez vocês possam vir a pensar que as coisas andam meio embaralhadas. E creio que de fato elas são, pois se estão se apresentando assim, é por que devam mesmo ser embaralhadas.
     A mente das pessoas é mesmo uma incógnita fascinante. As coisas despontam num determinado fluxo e elas acabam seguindo por ele, e não sou capaz de explicar isso, apenas dou conta dos fatos serem assim.
 
     Enquanto essas coisas se sucediam, o Tom estava no apartamento e estranhamente perdendo um dia fortuito de aula. Cleber como vocês sabem estava fora, e a Pauline também não estava com ele, pois já estava na faculdade.
     Sozinho no apartamento que dividia com Cleber, Tom decidiu ligar o computador e consultar algumas coisas. Alguns pensamentos indeléveis permeavam a sua mente.
     Vou relatar o que o vi fazendo, e qualquer juízo de valor que eu faça pode ser devido apenas as minhas impressões, sem nenhuma convicção de nada. Como eu disse, acho que não conheço tão bem esse rapaz...


     Naquele dia Tom estava consultando coisas como terapia sugestiva (o que me causa certo estranhamento), cura reconectiva e psicodrama. Tudo bem que essas coisas possam se relacionar com a área de estudo dele, mas aqui são minhas impressões a dizer que ele não estava procurando nada que fosse relacionado a trabalhos para a faculdade.

     Um símbolo em particular chamou minha atenção, mas por mais que vocês possam pensar que eu saiba de tudo, também estou a tentar compreender as coisas e por isso faço estes relatos. Eu não notei bem que símbolo era aquele, mas sei que nunca o vi antes. Não sei se era um logotipo, um hieróglifo, um desenho de slogan, uma marca, ou qualquer outra coisa, e não consegui perceber porque muito depressa ele saiu da página e apagou os registros de busca, limpando inclusive os caches do computador. Isso sim eu notei bem.

—Três! ...Ou sete?
Indagou Tom após desligar o computador.
—Então só pode ser isso, ou se não for isso, é quase isso...Mas qual relação que teria com aquele cara?

     Espero que estes pensamentos se conectem o quanto antes com os eventos, pois seguindo a lógica em que acreditamos, os eventos se relacionam de tal modo que o que poderia ser considerado como acaso, pode ser apenas acaso aparente, coordenado por algo ou por alguma coisa além de nossa compreensão.


     Não desejo que os sujeitos dessa história caiam em alguma paranoia mental a ponto de se tornarem obcecados por coisas descabidas. Ademais isso, me permito a conjecturar as hipóteses descabidas e livrá-los dessa mácula....
     Três rapazes, teria isso qualquer relação com o que ele pudesse estar buscando? Três calouros? Três personagens até aqui, sendo Cleber, Tom e o Dude talvez, apesar de só ter sido mencionado... Três moças, talvez, Pauline, Ana Clara e Carla, apesar desta última também ter sido apenas mencionada brevemente.... Três também pode se referir ao terceiro semestre que nossa garota cursa, ou estou em devaneios?
     O sete como número da totalidade do universo em transformação, com 7 dias em que ele tenha dormido no apartamento de Pauline, 7 pela teoria das cordas que talvez tenha cogitado naquele filme....7 passos a seguir, as esferas celestes, as cores do arco-íris (aqui não teria relação...) e tantas outras coisas que a simbologia desse número passa suplantar.


     Saindo em disparada, como quem tem um compromisso inadiável a alcançar, Tom pegou o seu celular e desceu do prédio. Mal cruzara o portão e deu de cara com Pauline, que estava cabisbaixa e pensativa no que estaria acontecendo com sua amiga Ana Clara. Mesmo que qualquer compromisso fosse evidente, não era maior do que aquele semblante evidenciava.

     Pauline precisava de seu apoio naquele momento. Estava prestes a desabafar como nunca havia feito diante dele. Suas fraquezas e emoções ela sempre soube guardar consigo. Mas confesso que muitas vezes Tom era capaz de captar os sutis sinais de tristeza emitidos por ela.


—Pauline, você quer conversar? Vamos lá no apartamento pra conversar?
—Não, acho que está tudo bem.
—Você está tentando me enganar ou se enganar?
Não está nada bem e é preciso conversar pra tentar entender o que está se passando. Ninguém consegue lidar com tudo sozinho e amigos também servem pra isso, ou não é?
— Se eu pedir um abraço, apenas isso, você me dá?
     Sem ao menos responder, Tom a tomou em seus braços, trazendo para perto de seu corpo e mantendo a cabeça de Pauline em seu ombro. Colocou os braços entre sua cintura e foi subindo lentamente, acariciando fortemente suas costas. Ao pé do ouvido sussurrou:
—Não se preocupe. E estou aqui.
 
     Um lapso estranho foi sentido naquele instante por Pauline. Ela teve vontade de se apartar do amigo, mas ao mesmo tempo, não conseguia tomar tal atitude. Era como se seu corpo não correspondesse aos ordenamentos de sua mente e o sensoriamento remoto estivesse em conflito.
Ainda envolvida em seus braços, ela disse com uma voz chorosa:
—Um dejà vú! Tom, não pode ser!
— Calma. Não precisa dizer nada...
—Tom, não pode ser! Gritou em sobressalto.
 
Olhando abismado para a face pálida da moça, ele retrucou:
 
—Como assim, o que você está querendo dizer?
—Você! Eu conheço você!
—Claro que me conhece, oras. Até triste você é engraçada, querida.
—Não, Tom. Para de simular! Eu sei quem você é!
 
A palidez agora perpassava a face daquele misterioso rapaz...

***Continua****
Pettine
Enviado por Pettine em 10/03/2018
Reeditado em 10/03/2018
Código do texto: T6275620
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