Não sei quê, não sei quê lá
“Se ele soubesse que eu já descobri seus reais motivos, o que faria? Engendraria outra mais convincente? Não. Um sujeito que não percebe que eu já sei a razão pela qual ele só me entregou a carne dos cachorros agora, às dez da manhã, quando eu saí do prédio. Hum! É porque a síndica reclama, A síndica reclama porque odeia o cheiro de carne, e por sua vez, já tomou esbregue da moradora do 401 que viu pingos de sangue no hall. Ora, se ele tivesse alguma sagacidade, já teria intuído… bolas, não posso andar por aí enchendo de inteligência a cabeça de porteiros. Não seria lógico. Ah! Também não há motivos para passar as noites em claro remoendo o caso… ora veja só! Eu, um cinquentão aposentado que vive só, na companhia de três cachorros, andando pelas ruas para ir tirar minha aposentadoria no banco, ruminando o caso da mentira do porteiro de que a carne só chegou agora. Não tem cabimento uma coisa assim… Ah, a inócua inocência das nossas mentiras cotidianas até onde nos leva? Há vários tipos de mentiras. Agora ocorre-me: a mentira prejudicial somente a terceiros, a mentira fanfarrona, a mentira virtuosa, a religiosa… mas a mentira daquele cachorro de porteiro, sob que ângulo eu poderia analisá-la ainda? Bom. De uma coisa posso ter certeza. Um fato, grudado a uma mentira tem boas probabilidades de compartilhar de sua 'imortalidade'. A carne do disque açougue não chegou. FATO. Por quê não chegou na hora marcada? MENTIRA. Um grudado com o outro, resultado. Vai dar no Jornal Nacional: Cinquentão provoca mortandade de cachorros em Salvador! Ai as mentiras… acho que a pior, a que tem afundado a civilização dos bichos homens por eras a fio, é aquela que traz o visgo do silêncio. A que povos inteiros conspiram para difundi-la. Essa é a pior. A mentira silenciosa. Aquela que compartilhamos sem dizer uma só palavra. Porreta! Há uma prevenção explícita contra a mentira falada, mas com os outros tipos? Silêncio de sepulcro. É esse tipo de mentira que realmente merece receber o impacto de mísseis! A mentira silenciosa, como diria Mark Twain, companheira de todas as tiranias e imposturas, desigualdades e injustiças que afligem a todos. É isso. No mais é conviver com a cachorrada, com a cachorrice, com o cachorrismo de porteiros. Esquece que havemos de aguentar uma hora de fila de banco. Enquanto isso entrego-me a uma distração que adquiri, melhor se acentuou, depois que me aposentei. Fazer um jogo delicioso, a meu bel-prazer. Observar os costumes do bairro, dos homens, numa verdadeira simbiose… em mim a observação das pessoas já se tornou intuitiva; vou espreitar essas duas adolescentes que estão aqui na fila à minha frente. Deus! São dois botões a desabrochar.”
- Cê não soube não? Ihh cara, a maior neura!
- Qual é? Qual foi? Diz.
- Ôchee menina, agora mesmo tá dando na TV, nos jornais, no rádio, cê não soube não?
- Soube o quê maluca?
- Alooouuu? Tá viajando é? Tá sem antena é? Se liga? Lá nos staites rolou o maior barraco em Nova York ontem. Imagina só: em plena manhã. Logo cedo, a galera toda tava, tipo assim, indo pegar no maior trampo, e veio de lá do espaço o maior boing cara, e bateu assim de frente com a torre do World Trade Center, cara! E aí foi aquele fogo. O maior barraco cara.
- Pô; irado! Mas qual foi a desse piloto cara? Que doidera!
- Sabe? Eu não sei. Sabe? Tão dizendo assim que foi ato de terrorismo e que não sei quê, não sei quê lá...
- E você acha o quê dessa onda toda?
- Sabe? Eu não sei… mas tá tudo meio estranho nessa parada aí, porque; como é que pode? Como é que pode ser acidente, se um tempo depois, tipo assim de cinco minutos depois, veio outro boing de lá e bum! Entrou com tudo no meio da outra torre. Sabe, tipo assim, o maior terror mesmo. Super do mau. Tinha muita cuca no lance cara, alguém planejou a parada toda, sabe? Eu não sei. Bizarro mesmo cara.
A outra com olhar atônito e o maxilar despencado no espanto…
- Pô!!!
- E o pior é que tinha gente se jogando lá de cima, o maior fogo, fumaça, bombeiro, sirene, poeira, sabe tipo assim como um vulcão quando tá na maior ira? E aí cara, a TV mostrou a galera embaixo na pior. Eu passei mal só de olhar.
- Pô, super dow essa onda… e aí deu em quê?
- Deu na maior zoeira, o pau comeu. Com tanto fogo… sei lá, as torres começaram a desabar e foi aquele terremoto e não sei quê, não sei quê lá. E aí cara, alguém deve ter falado lá pro prefeito, pro governador, não cara, pro presidente mesmo. Pô bicho vai lá, dá um jeito. E aí cara, o gringão já chegou botando moral, chegou já filmando a parada. Tava puto dentro das calças sabe? Disse que ia mandar investigar, que ia prender, dar porrada, jogar bomba lá num tal de Bin Lata e o escambau vara, o maior barraco!
- Bin o quê menina?
- Bin Lata, Laden, sei lá, eu não sei, um cara que – apareceu a fuça dele na televisão -, um cara assim feio de danar, com uma barba enorme. Uma cara de cachaceiro, um bebum menina, você precisava ver… mas aí, então, resumindo: o presidente, com uma cara super do mau, disse sacomé? Que ia meter bronca. Vai chutar o pau da barraca. Vai meter bomba pra dentro cara!
- Chiii! Então o bicho vai pegar mesmo viu?
- Pois é. É vem mais barraco por aí. Mas quer saber? Deixa pra lá esse negócio de guerra. Eu tô afim é de te contar aí um babado sabe? Sabe o Binho?
- Esse do terror?
- Que terror pô!? Se liga. O bin-ho! O do terror é Bin! Eu tô falando é do binho, o Clebinho sua tonta. Aquele que ficou comigo na festa da Patrícia. Pois é, dei o maior flagra nele no shopping. Peguei ele no maior love, passeando de mãos dadas com a vassoura da Amélia. Pô! Quando eu vi aquilo menina, eu fiquei gelada por dentro sabe? E o safado ficou gaguejando, tentando me convencer que tinha ligado pra mim, que só dava na caixa de mensagem, que não sei quê, não sei quê lá, que encontrou a Amélia por acaso no shopping. Puxa eu fiquei super pra baixo. Eu que tava mesmo pensando que ia rolar de novo com a gente aquele lance bem maneiro… sabe? Tou assim super mau com isso…
E fez uma cara de vítima de atentado terrorista. A outra procurou consolar:
- Liga não. Os homens têm sempre assim prontinha uma mentirinha básica.
- Bahhh! Mentirinha básica dele, eu até aceitava; mas uma mentira cabeluda assim como essa, na minha cara!? Como é que pode alguém mentir assim? Super podre.