Ciclone

Ele costumava lavar as mãos todos os dias antes de tomar banho. Sim, para ele, tomar banho era uma refeição para a alma. Ciclone vivia numa casa abandonada, mas na verdade era ele a casa abandonada. O menino que se ousa chamar desesperado, não teve na sua infância amigos de infância. Viveu pois uma vida adulta ainda em tenra idade, que tão logo pôs os seus pés no mundo, começou por ser alvo das vicissitudes da má vivência. Enquanto os outros rapazes da sua idade brincavam aos carros de lata, aos papás e mamãs, o homem de idade minúscula, com o nome aterrador por conta da sua personalidade, já resolvia problemas, os quais até as pessoas já mais crescidas dispensavam.

Com um enorme senso de responsabilidade, o também chamado Siz era aplicado nos estudos e amalucadamente apaixonado por artes, embora nunca tivesse explorado nada disso como bem queria, pois tinha que pôr em primeiro lugar o orgulho da família. Mas à dada altura, a criança mais velha despertou do sono do que depois considerava ter sido passividade e começou por contestar tudo aquilo que lhe deixou de ser aprazível. Consciente de que iria enfrentar uma guerra colossal com a família e com a sociedade, pediu aos seus surtos que não saíssem dos seus lugares:

"Para vencermos esta luta temos que apenas não mover uma unha sequer", aconselhou-lhes, achando que os seus surtos poderiam com ele conversar. Já começava a perder uma parcela da realidade que durante as noites agia como se fosse dia: não dormia, porém andava pelas ruas como se a sua residência tivesse sido levada por um tufão. Entretanto, não recebeu nenhum feedback por parte dos seus surtos, facto que sem nenhuma gota de perplexidade ajudou-lhe a perder o total controlo de si mesmo. Já não jantava mais e escola para ele começou a ser uma conversa para gente devoluta. Ele sentia que a vida era muito mais do que ficar rodeado por uma vasta gama de seres diferentes e um ditador frente ao salão, com uma vara de mau aspecto, à espera do primeiro filho alheio que se afastasse da linha para então poder cumprir com o seu aclamado dever de segundo pai. Outroura o já desorientado e um pouco mais crescido menino precoce não se poderia ver na diversão sem antes ter terminado os deveres de casa, mas passado algum tempo não poderia ver-se a terminar os deveres de casa sem antes ter estado satisfeito com as distracções.

Ciclone Siz, este último, abreviação opcional de "Sismo", nome que a própria vida lhe ofertou por ter sido um estraga-prazeres e destruidor de humores, sempre foi considerado um rapaz prodígio para os mais velhos e fonte de grande admiração entre as pessoas da mesma faixa etária, mas apesa dos louvores, aquele miúdo com tamanha e engordecida tristeza em si nunca se sentiu na posição de quem merecesse ser figura de estilo. Ele achava-se exótico o suficiente para nunca ter podido acreditar que um dia a vida seria apreciável. Rodeado por pensamentos de suicídio e talvez algo pior do que isso, aborrecia os seus pais que tanto o amavam, os irmãos que apesar de certas grosserias queriam vê-lo triunfar e o resto da família que depositava ainda mais confiança na conta da sua inteligência. Obviamente, todos tinham crença em si, execepto ele mesmo. Um ano depois de ter terminado o liceu, no Sofrimento, província em que nasceu, cresceu e onde viveu toda sua vida, quando todo mundo a sua volta aguardava o seu ingresso à vida universitária, Siz mostrou-se finalmente aborrecido com a vida que levava.

"Estudar não é para mim. Não nasci para ser fantoche dum sistema imperialista de ensino, tampouco acredito ter vindo ao mundo para viver uma vida alheia", manifestou, o que principiou uma guerra fria no seio da família. Muita coisa de horrível aconteceu, sem contar que o rapaz já não era muito sociável, obrigado era a sair de casa, não era bom o suficiente para relacionamentos, embora as garotas mais crescidas vissem nele o homem ideal, e pior, o puto adorava o escuro que tão rápido, após as guerras de palavras que sofrera em casa, os gritos dos pais e a desconfiança de outrém passou a isolar-se ainda mais.

Os poucos amigos que tinha procuraram saber por onde ele andava, mas lá estava ele sempre presente, apenas ausente do mundo real, observando o mundo de fora como um autêntico atentado a sua terapia à favor da solidão.

Pouco tempo depois uma força lampejante que decerto conseguiu iluminar parte do seu sorriso e trazer-lhe alegria ao interior, descobriu prazer enorme na escrita, sem nunca ter-se considerado escritor nem poeta, mas como toda família não se alegra em guardar pesos desnecessários na morada, Ciclone foi despejado do único tecto que conhecera. Não levou nada além dos seus rascunhos, pois detestava a ideia de ter saído de lá com coisas que não conquistou. Dizia que só tinha o que tinha por ser filho e por durante um boa data ter feito o que lhe pediam. Já algum tempo resmungava consigo mesmo o facto de ter que servir aos pais como se tivesse ele implorado para nascer.

Refugiado, mas com a mágica de que a tinta da sua caneta se mantia conservada, escrevia a vida e lia o mundo com os olhos amargurados, perguntando a si mesmo o que fazia ali. As pessoas que por lá passavam, nos escombros das estradas da vida, nem sempre deixavam-lhe alguma coisa, sem conhecimento de que tipo de indivíduo era ele: um mendigo ou esquizofrénico? Nem uma nem outra. Ele era um ser humano que não conhecia a humanidade!

Dias de sol e noites a frio foram ali gastas com quase nada pra comer. Já se passava um ano e o jovem senhor que já carregava os 18 anos pelas costas começou a ver-se morrer. Olhou pra o céu e perguntou às núvens:

- Por que não me despejam água? Não sei qual foi o meu crime, mas estou aqui há 10 meses e não me deparo com nenhum acto de amor. Façam chover alguma coisa e me deixem banhar meu coração.

Responderam as núvens :

- Tu ainda podes mudar a tua vida. Tu tens muito mais potencial do que acreditas ter, e claramente podes ser alguém para ti mesmo e para aqueles que te amam.

- Aqueles que me amam? Acho que sou apenas eu quem ama.

- Queres mesmo uma chuva? Isso não depende de nós. A chuva de que precisas é uma introspecção, uma olhadela profunda para o ser de ti mesmo e uma chamada de atenção aos teus intentos. Levanta-te agora e corra para a vida!

Parou pensativo durante 10 segundos e pegou na única mobília que sempre lhe importou (o caderno e a caneta), e logo a marcar os primeiros passos rumo à respiração, quedas de água se assentaram sobre ele. Após tantos dias de fome, o banho que os céus lhe deu foi alimento suficiente para a sua alma já tão cansada de jejuar. Fartou-se daquela refeição que considerou ser espiritual e voltou para casa como um homem novo. Não para a casa da família, mas para a casa que ela ere mesmo. Depois da chuva, as circunstâncias lhe trouxeram uma bênção (um engravatado e bem aparente caça-talentos que não julgou-lhe pela aparência, olhou apenas para o que de mais forte possuía e para a nova alma que havia ganho, estendeu-lhe as mãos).

Ciclone Siz lançou o seu livro, intitulado "Diário de um Extraterrestre", uma história sobre si, como quem durante anos não se adaptou à vida terrena, vivia nos altos, embora com os pés bem assentes no chão. Foi esta a grande catapulta de sua vida. Ele precisou sair de si para encontrar o sucesso, mas o sucesso não lhe serviu de grande coisa porque não deixava de desacreditar no amor entre as pessoas. Siz viveu dois anos sozinho, sem família, com a escrita como única amiga. Afinal, ele se tornara num novo homem, mas não num homem melhor. Aos 30 anos casou-se com a solidão, e quando menos esperava ela o matou. Foi encontrado morto, enforcado pelas suas próprias palavras - "não sou o que lês".

Widralino
Enviado por Widralino em 05/03/2018
Código do texto: T6271490
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