A lei é para todos
"A civilização precisa de algo além da lei para mantê-la unida. Veja: nem toda humanidade está igualmente disposta a aceitar como justiça divina aquilo que conhecemos como lei humana."
(John Buchan)
— A lei é... hum... para todos.
Com estas palavras o excelentíssimo senhor doutor juiz deu por encerrada a palestra, sob a ovação acalorada da plateia. As coisas iam bem para o excelentíssimo, senhor, doutor, juiz. Acumulava dinheiro como acumulava pronomes e adjetivos de tratamento. O meritíssimo, cujo mérito era indiscutível dada a impossibilidade de discussão, contava com benefícios legais que iam além de sua própria esfera pessoal, ajudando inclusive suas versões menos favorecidas em outras linhas de realidade, o que era conhecido como auxílio multiuniversal. Mas isso não vem ao caso aqui. Nesta realidade na qual estamos, o poderoso juiz estava na crista da onda, louvado pela imprensa e amado pela opinião pública, uma vez que cumpria com seu importantíssimo papel social com uma competência jamais vista. Isso veio a torná-lo um tanto quanto imprudente, como logo veremos.
O excelentíssimo senhor doutor juiz abandonou o palco do salão de convenções e caminhou, todo emproado, pelo corredor de admiradores que o cercavam, bajulando-o e lambendo o chão por onde ele passava. Alguns chegavam ao ponto de se deitar à sua frente, ansiando por serem pisados por aqueles pés excelentes, meritosos e jurisprudenciais. O meritíssimo fazia-lhes a vontade, calcando-os com os solados italianos finíssimos de seus sapatos, comprados com o auxílio-vestimenta que tanto fazia por merecer.
O excelentíssimo senhor doutor juiz saiu do edifício por entre os flashes das máquinas fotográficas. A imprensa em peso se acotovelava à saída, os repórteres se dilacerando uns aos outros por uma migalha de atenção do meritíssimo senhor doutor. Nisso, um cofre que estava suspenso no ar por um guindaste despencou, tendo o cabo de aço que o sustentava no espaço rompido devido a um cálculo de peso mal feito, atingindo precisamente as coordenadas onde o excelentíssimo se colocara ao alcance de todas as atenções. Ninguém mais se feriu. O cofre, uma imensa caixa de metal pesando várias toneladas, esmiuçou a substância imponente do magistrado, assim como uma prensa industrial reduz um grilo a suco.
Não entrarei em detalhes quanto à comoção que se estabeleceu logo após o trágico acontecimento. Porém, um sarcástico mendigo, que a tudo assistira de seu abrigo de papelão na calçada, virou pro canto enquanto resmungava só para si:
— É… a lei da gravidade é para todos, doutor.