1030-ABELHAS, MEL E REPOLHO-Memórias do autor.

ABELHAS, MEL E REPOLHO.

A Fazenda Coqueiral era, aos domingos, o local preferido da grande família de Vovô Aníbal. Filhos, filhas, noras, genros, netos e netas e até alguns conhecidos passavam lá horas de lazer, de conversa fiada, de passeios pelo pomar, pela olaria ou ao longo do córrego que fazia movimentar o moinho de fubá.

A sede ficava perto da cidade, cerca de uma légua — seis quilômetros, mais ou menos. Por isso, a maioria chegava a pé, pela manhã, antes do almoço, sem se preocupar em levar nada para compensar o material e o trabalho que tia Elvira tinha ao preparar o almoço que, por vezes, era para vinte ou mais pessoas. Outros chegavam á tarde, no caminhão de tio Chiquinho.

No fato que vou contar, dispensarei maiores detalhes da fazenda para focar em nós, meninos meninas entre seis e doze anos, que agiam com total liberdade: no quintal, chupando mangas, laranjas e outras frutas: ou ao longo do córrego, para molhar os pés, brincar de jogar água uns nos outros e, de vez em quando, indo até o poço do Godinho, onde os meninos entravam pelados e cujo caminho as meninas não conheciam.

Naquele domingo, havia uma novidade no pomar: tio Alpineu havia capturado um enxame de abelhas em um caixão rústico que colocara debaixo de duas jabuticabeiras.

O pomar era grande, e só de jabuticabeiras havia dez pés, plantadas em um local mais baixo, perto do córrego, formando duas fileiras, tornando o local sombreado, fresco, agradável de brincar. Eram pés de mais de cinquenta anos, e os galhos fortes se entrelaçavam no alto das copas, dando ensejo que brincássemos de Tarzan, pulando de um galho ao próximo, passando de uma jabuticabeira á outra.

— Com essas abelhas, o pomar vai produzir mais. E a jabuticabeiras, nem falar...! — Explicou tio Alpineu aos visitantes, apontando ao longe o caixote com a colméia. — É melhor a gente não se aproximar, pois elas estão se acostumando ao local e ficam muito brabas quando tem gente por perto.

Ele havia colocado provisoriamente o caixão no extremo das fileiras, onde dois pés de jabuticabeiras do mato pouco produziam e por isso pouco visitadas. Não era tempo de jabuticabas, então a gente podia brincar ä vontade nos galhos lisos e lustrosos das árvores. E foi o que nós, seis ou sete garotos, fizemos tão logo chegamos ä fazenda. Era ainda de manhã e não fomos avisados da presença das abelhas lá no fundo do pomar. Quando subimos pelos pés e começamos a gritar como macacos ou imitar os gritos de Tarzan, é que Natal, filho de Tio Alpineu, avisou:

— Cuidado com a caixa de abelhas!

Mas a gente nem prestou atenção. Pulando, berrando, de vez em quando escorregando pelos galhos lisos. Organizamos em duas “tribos” para ver quem pegava quem saltando pelos galhos. Zezinho da Tia Rosa era o mais afoito: magrela, pulava pela galhada, atrevendo-se aos galhos mais finos devido à leveza de seu corpo. Fugiu rapidamente de seus perseguidores, chegando até os galhos das jabuticabeiras “do mato”. Fomos ao seu encalço.

Foi então que ouvimos o galho quebrar e Zezinho despencar da árvore. Não seria nada de mais, pois os outros galhos inferiores foram amortecendo a queda, não fosse ele cair exatamente sobre o caixão de abelhas.

Vi a nuvem escura de abelhas que saiu sobre os destroços do caixão. Natal, que estava na minha frente, gritou:

— As abelhas! Vamo imbora!

Virei depressa, agarrando-me no galho que estava atrás e procurei pular pra longe. Eu e Natal fomos picados por duas abelhas, mas conseguimos chegar ao chão e sair correndo. Socorrer o primo, nem pensar. Matamos as abelhas que nos ferroaram, cuja dor era forte e, com os outros primos, que já tinham descido das árvores, corremos na direção da casa, gritando.

Zezinho vinha correndo a uma boa distancia de nós, mancando, gritando de dor e dando em si mesmo tapas na cabeça, no rosto, nas pernas e nos braços. Seu pavor era tanto que na correria alcançou-nos justo quando chegamos á casa. Uma figura monstruosa: os cabelos loiros emplastrados de mel, que escorriam pela face, pescoço e orelhas. A camisa rasgada de um lado. Mancando e chorando de dor.

— AI! AI! AI. — Falava alto entre soluços de dor.

Ajudamos ainda a matar algumas abelhas que estavam nos cabelos e na cara, misturadas ao mel.

Tia Elvira, mulher expedita e que tinha atenção voltada para tudo o que ocorria na casa, ao redor e mais além, foi a primeira a assomar a no alpendre e a verificar a gravidade do ocorrido,

Desceu depressa a escada e tomou Zezinho pelas mãos e levou-o para cima. E nós atrás, curiosos e medrosos das consequências do desastre.

— Zé Pina! Trás uma bacia grande com água. E uma toalha.

O ajudante para todos os momentos apareceu com rapidez inexplicável trazendo uma grande bacia com água no momento em que ela deitava Zezinho na cama de um dos filhos e já passava as mãos pelo seu rosto, tentando tirar um ferrão de abelha fincado bem na bochecha.

Com a toalha, foi lavando o rosto, as orelhas, passando pelos cabelos, a fim de tirar o mel e alguns ferrões. Zezinho chorava e gemia com a dor.

Então chegaram as tias e os tios que se aproximaram da cama, empurrando-nos para fora. Entretanto, encontrei um local aos pés da cama, onde permaneci atento a tudo. E eles recém-chegados começaram a perguntar e a dar palpites sobre o que fazer:

— Rodela de cebola de cabeça é muito bom! — Disse alguém.

Ou:

— Água com vinagre!

E Ainda:

— Folha de repolho!

— Esfrega pasta de dente!

— Azeite de oliva refresca muito!

Era uma situação sem precedentes na família e ninguém sabia exatamente do que estava falando. Zé Pina não esperava ser mandado. Surgiu logo com uma grande cabeça de cebola e uma faca. Fatias finas foram cortadas e colocadas sobre a face, testa, pescoço, braços, enfim, onde havia sinal de picadas. Uma bisnaga de dentifrício Kolinos passou de mão em mão até chegar ás de Tia Elvira, que não hesitava em aplicar as panacéias.

O rosto estava vermelho e inchado. As orelhas eram como duas metades de pimentões maduros, uma metade de cada lado da cabeça.

A água com vinagre veio a seguir e passada suavemente com outra toalha limpa. Em seguida, veio o óleo de oliva, cujo conteúdo da garrafa, já no final, foi passado em Zezinho, nas partes mordidas.

E o mais incrível é que, correndo á horta da casa, Zé Pina trouxe de lá um repolho pequeno, cujas folhas velhas ele foi tirando no caminho. Chegou á cozinha onde estava tia Simone, que pegou logo o repolho e foi fatiando em tiras muito finas. Quando teve uma quantidade que encheu suas duas mãos em concha, levou-o ao quarto.

Zezinho já estava mais calmo, do choro restava um soluço. Os locais coberto com as fatias de cebola, receberam por cima o repolho picadinho. Talvez o frescor dos vegetais aplicados, mais água fria com vinagre tenham causado um pouco de alívio.

Num determinado momento, a cara de Zezinho parecia uma salada de repolho, com cebola, vinagre e óleo, pintalgados pelo branco da pasta de dentes.

Saí de fininho. Na sala, os tios já estavam ralhando com os filhos. Minha mãe me pegou pelo braço e me arrastou para o alpendre. Colocou-me de pé defronte um vaso de flores e me disse, com determinação e raiva na voz:

— Vi ficar aqui de castigo. Só sai quando a gente for embora.

Não eram nem meio dia, estávamos sem almoço e a gente costumava voltar ao entardecer, lá pelas seis horas.

— Mas, mamãe...

— Fica calado, Nem um pio. Vai ver que castigo vou lhe dar em casa.

Além do castigo, a fome!

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Em casa, na presença de papai (que não tinha ido á fazenda naquele domingo), fui contando o acontecido e recebi um castigo leve, pois, afinal, havia sido um acidente.

Acidente que encerrou o projeto de tio Alpineu de criar abelhas: elas fugiram do caixão quebrado e tomaram outro rumo. Foram em busca de um lugar sem macacos e Tarzans que lhes destruíssem a colméia.

ANTONIO ROQUE GOBBO

St. Louis, MO, 14 de setembro de 2017.

Conto # 1030 da Série MILISTÓRIAS PLUS.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/02/2018
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