A Mulher de Lata
Certa vez em um certo dia ela sorriu, certa vez em uma certa noite ela chorou, era tão fácil como abrir os olhos ao acordar.
Ela iniciava seus sistemas pela manhã, cumpria suas tarefas, e os desligava bem tarde da noite, recarregava suas baterias, para religa-los no dia seguinte. Era tão fácil e tão relativo. Uma máquina quase perfeita. Mas, havia um porém, “certo algo”, que estava presente, quase sempre, em pequenas doses, esse “certo algo”, dentro se seus sistemas. Seus sistemas que poderiam ser descritos como um recipiente vazio, o “certo algo” era despejado dentro do recipiente e depois descartado, o recipiente era lavado e preparado para receber outro “certo algo”. Esse “certo algo” poderia ser sorrisos de um dia agradável e produtivo, um dia que só fora agradável pois fora produtivo, onde conseguira realizar suas tarefas com êxito e comprouvera aqueles a quem servia e convivia, poderia ser lágrimas cordiais para aqueles a quem precisavam de lágrimas, em ocasiões que convinha usa-las, essas que ocasionalmente apareciam. Certa vez, precisou delas em uma cerimônia de despedida, os mais antigos chamavam de velório, ela usara um pouco de suas lágrimas, não muitas, pois não dispunha de muitas em suas reservas, gastas em respeito há uma mulher que não a parira, mas a criara. A mulher havia deligado seus sistemas antes do tempo hábil e escolhera não religa-los mais, os mais antigos chamavam de suicídio. Não importava o que fosse, era tudo descartável e o descartável é sempre descartado. E mais uma vez o recipiente estava vazio, e ficaria vazio até que um “certo algo” fosse despejado dentro dele, porém, nada era permanente.
Certa vez A Mulher de Lata procurou em livros de dicionários e enciclopédias um melhor termo que poderia definir aquilo que era chamado de “certo algo”, encontrou uma palavra que se encaixava perfeitamente em sua definição, “sentimento”.
Sentimento: Um sentimento é um estado afetivo que se produz por causas que o impressionam. Estas causas podem ser alegres e felizes, ou dolorosas e tristes. O sentimento surge como resultado de uma emoção que permite que o sujeito esteja consciente do seu estado anímico.
A mulher de lata desenvolveu certa curiosidade por esses tais “sentimentos”, pareciam ser agradáveis, ela já teve sensação parecida mas nunca continua. A cada dia procurava mais e mais sobre esses tais sentimentos e, pela primeira vez, sentiu exaustão. Sua jornada como máquina a deixara exausta, todos os dias precisava manter-se ocupada, se sua mente parasse ou se suas tarefas acabassem ela teria seu recipiente vazio e por alguns momentos doeria. Não uma dor física, as dores físicas não a machucavam, a dor que chegava não podia ser explicada, se procurasse em um dicionário não encontraria definição, a dor que era enigma indecifrável até para os mais sábios, porém, profundamente e continuamente doía.
Um de seus amigos, assim ela os denominava, as pessoas com as quais se relacionava que a cercavam, quando não tinha tarefas a serem realizados, essas que a ajudavam a preencher seu recipiente com gargalhadas, eram assim esses tais amigos, achava correto chama-los assim, talvez por não encontrar termo melhor. Um deles a dissera que tudo que ela precisava era um de coração, disse que havia um mago na cidade que poderia ajuda-la, disse também que haviam muitos magos charlatões na cidade, que se denominavam magos porem eram apenas fantoches aprendizes, ela deveria procurar o Mago correto.
Sua jornada começou, não em ruas feitas de tijolos dourados, mas em ruas cinzas de concreto, não era um dia especial, era um dia qualquer, como todos os dias eram. Depois de muito procurar, encontrou o mago em um bar pela cidade, o bar era espaçoso e escuro, havia duas janelas, com telas e duas portas, a principal e a de saída de emergência, as portas eram estreitas, tanto que permitiam a passagem de uma pessoa por vez, olhando de fora ele parecia menor, quando se entrava parecia ter duas vezes o seu tamanho, as paredes pintadas de preto, haviam algumas mesas redondas divididas nas duas alas, a primeira ala encontrava-se um enorme balcão, onde trabalhava um homem, e um jukebox antigo que tocava algo que ela não conhecia, na segunda ala apenas mesas, e casa uma delas iluminada por uma fraca luz branca, uma luz que também iluminava o balcão e ao fundo da segunda ala um cortinado da cor das paredes que era à entrada de um quarto e nesse quarto o Mago. Ele se intitulava mago pois fazia misturas que nem os mais estudiosos faziam, misturas que deixavam calmo, enérgico, alegre, porém, se não fosse cuidadoso, deixavam desgostoso da vida, mesmo com uma vida de mentira, e para voltar a ter gosto pela vida precisariam pagar tributo ao mago e ter um pouco mais de suas misturas, e a cada dia mais e mais. Ela pediu provas, como poderia saber que ele era o verdadeiro Mago:
“Você não pode, eu não tenho selos ou garantias. Minha única garantia é que você irá voltar, assim como todos os outros voltam” – respondeu o mago.
Ela não respondeu, apenas acenou com a cabeça e sinal consentimento.
A mulher de lata, já desgostosa, seus sistemas rodando repetitivamente quase enferrujados, sem medir consequências, contou ao mago seu infortúnio e disse a ele que queria sentir verdadeiramente. O mago deu-lhe um agradável sorriso e a entregou um frasco onde havia pequenas rodelas vermelhas que brilhavam como rubis e pulsavam em ritmos padronizados como se pulsa um coração, e era assim que o mago as chamava, os corações, que a faria ter quaisquer sensações que lhe faltassem.
O primeiro que tomou tinha gosto agridoce, a fez sorrir, sentir o doce invadir seus sistemas lhe trazendo paz e o sal parecia limpar sua ferrugem. Tinha, em sua companhia, um todas as manhã, dois todas as tardes e três todas as noites. O tempo passou, os dias monótonos sem emoção transformaram em dias felizes, os dias felizes tornaram-se elétricos, a eletricidade aumentava e os corações, ao decorrer dos dias, junto a ela. Agora pela manhã dois, ao entardecer quatro, ao cair da noite cinco e vezes na madrugada, a Mulher de Lata ligava seus sistemas involuntariamente e procurava em seu frasco por mais um coração. Os corações acabavam e ela inicia mais uma vez sua jornada, em busca de mais corações, Cada inda e vinda os corações aumentavam e seu preço junto a eles. O bar estava aberto por 24h, todos os dias, pelas manhãs um homem atendia no balcão, a noite uma mulher o rendia. De noite o bar era diferente, havia luminárias coloridas, tocavam-se músicas antigas, desconhecidas, estranhas, dançantes e agradáveis, havia mais pessoas ocupando as mesas e o balcão, algumas conversavam, outras gargalhavam, outras apenas existiam por lá. Nunca havia parado para comtemplar aquele lugar apesar de que, nunca havia parado para comtemplar coisa alguma. Mas, dessa vez ela parou, se sentou, em umas das cadeiras do balcão, perto de um homem.
Sentiu que deveria dizer algo e disse:
“A música é boa”
“É sim” - respondeu o homem, sem olha-la - “Vai pedir?” perguntou.
“O que é isso”
“Alegria líquida”
“Alegria liquida? São algum tipo de coração.”
“Mais ou menos” - o homem respondeu
“Como assim?”.
“Às vezes não tem o mesmo efeito”.
“Entendo.” - ela pensou “Vou querer”- ela pediu.
“Eu geralmente peço alegria liquida, mas existe a famosa coragem liquida que também é bem pedida por aqui, a sinceridade liquida, o desapego, uma infinidade de opções. A mais pedida é sempre a alegria líquida, ela tem gosto doce”
“É funciona?”
“No começo funcionava para mim, acredito que vá perdendo o efeito com o passar do tempo, se consumir a mesma quantidade que consumia no início não sinto os mesmo efeitos, tenho que aumentar minha dosagem de tempos em tempos.”
“Porque não muda? Tenta outro método?”
“Como o que? os corações que vem buscar de semana em semana. Não, me tornaria refém, um prisioneiro.”
“Bom ao menos seria prisioneiro de a uma coisa e não de um lugar.”
Ele a encarou, confuso.
“Você não depende somente da alegria liquida, depende do lugar de onde ela é servida, caso o contrário não estaria aqui, teria as levado para casa, ou as comprado, eu não preciso estar aqui, já o senhor precisa tanto desse lugar quanto do que é servido nele.” – explicou a Mulher de Lata
“Vai ver eu gosto do escuro, e da boa música e de ter pessoas me questionando sobre o que devo ou não consumir.” – respondeu com certo tom de humor.
“Se atrapalho vou me retirar, desculpe-me”
“Não, não atrapalha, fique.” - pediu tocando, levemente, seu braço
“Eu já estava de saída.”
“Está bem, então até mais, sei que a verei novamente.”
“Provável.”
Os dias passaram e ela voltou ao bar, não pela manhã, como de costume, mas ao cair da noite. Gostaria de reencontrar o homem que a pediu para ficar, de ter mais daquilo, da breve conversa sem significado algum, sem objetivo, sem conceito ou definição, eram apenas palavras, que não precisaram ser ditas, porem foram ditas, foram prazerosas enquanto pronunciadas, da primeira saudação até a despedida. Ela procurou, porém, não encontrou. Mais dias passaram com eles semanas, novamente ela procurou e não encontrou.
A vida se seguiu como havia de seguir, ela se encontrava o Mago com cada vez mais frequência.
Perguntara a ele sobre as pessoas que frequentavam o bar:
“Muitos homens e mulheres como você, homens e mulheres de lata vem até mim ou até este lugar somente, a procura de algo que os distraia, os diverte, os faça felizes. Este lugar e eu damos a eles o que precisam e em troca eles nos dão o que precisamos. Certas vezes esses homens e mulheres desaparecem, por infinitos motivos, eu particularmente tendo não pensar neles. Meu trabalho não é pensar em suas vidas fora daqui.”
“Homens e mulheres de lata?”
“Não se ofenda é como gosto de chama-los.”
“E você o que é além se ser mago? Poderia chama-lo de Homem de Lata?”
“Além de mago, não sou ninguém, ninguém que você queria ou precise conhecer.”
“Entendo” - disse desviando olhar para sua própria imagem, refletido em algo que se assemelhava muito a um espelho dourado, e pela primeira vez viu-se. Viu-se como a mulher de lata, como seu corpo feito de lata, quase enferrujado, mostrava-se perante ao a si mesma e ao mago.
“Vai ter um baile na cidade, apareça por lá.” - disse lhe entregando um pequeno convite. “O preço cai pare metade para clientes Vips”. – disse o mago quando se despedia da Mulher de Lata.
“Vou pensar” - respondeu.
“A promessa é de muitos corações de todo tipo.” - disse com um sorriso no rosto
“Vou pensar” - repetiu
Ela pensou, não muito, mas pensou. O hábito de pensar antes de agir estava se esvaindo de sua rotina aos poucos. Se pensava muito não fazia, se fazia não pensava.
Ela foi ao baile. As luzes brilhavam e piscavam freneticamente, luzes coloridas, com formas e tamanhos diferentes, não se podia enxergar com clareza porém, ninguém pareciam não se importar, a música não era boa porém todas dançavam, a comida não era boa, porém todos comiam. Ela viu-se rodeada de inúmeros semelhantes a ela e semelhantes ao homem que procurava, homens e mulheres de lata. E, como prometido, encontrou vários corações de diversas formas e sabores, alguns engarrafados e consumidos como líquidos, na embalagem tinham, outros enrolados em seda ou palha, que exalavam um estranho odor com qual se acostuma se ficasse por perto tempo suficiente, haviam também as pessoas de lata que encontravam seus corações em outras pessoas feitas de lata, no prazer momentâneo que sentiam quando seus corpos se uniam e entregavam-se um ao outro.
Aquilo a agradou por um tempo, não pelo tempo suficiente. Mas ela não parou, não queria parar.
Já não mais doía. Ela se juntara com os homens e mulheres de latas, bebeu junto s eles, juntou seu corpo de lata junto ao deles, e com o passar do tempo se enferrujou junto a eles e, finalmente, pifou junto a eles.
Se esperavam um final feliz, novas aventuras de amores e desamores, arrependimentos e conquistas, desculpe decepcioná-los.
A mulher de lata foi descartada em um lugar qualquer, foi recolhida e reciclada, para que então, as pessoas feitas de carne e com o coração de aço pudessem construir uma nova mulher de lata. Teve um fim, mas não feliz, teve aventuras, mas sempre monótonas e repetitivas, teve amores, mas nunca duradouras ou verdadeiros, e apesar de tudo, jamais se arrependeu. Quanto ao Homem do bar, o qual ela denominara Homem de Lata, ela nunca mais o viu. Sua jornada foi trilhada, não em ruas feita de tijolos dourados, mas em ruas de asfaltos e em bares mal iluminados.
Regiane Martins Nonato
18/02/18