Costureira de Sonhos

Costureira de Sonhos

Quando pequena fazia roupas de boneca; seus grandes feitos a partir de retalhos, sobras das parcas vestes confeccionadas pela mãe - única costureira da pacata cidade interiorana onde moravam. Antônia, ou “Toninha” como a chamavam, inventava cortes e enfeites enquanto sonhava: “um dia faria para si, vestidos como aqueles...” Por vezes, dançava em frente ao espelho do velho armário; rodopiava descalça e vestida de chita, para ela: “o mais belo traje de rendas e tules”.

Passaram-se anos, alguns sonhos não passam; entre linhas e remendos jazem bordados, também os fracassos. Perdida foi a inocente infância, não restou-lhe muito - foram-se os pais levados pelo tempo; os irmãos atrás de sonhos e comida. Ali, a terra seca não mais engravida, tornou-se estéril, sem vida. Sozinha recolhia dela os ossos, serviam como alimento para o velho fogão, onde cozinhava viajando entre a larápia fumaça - fortuitamente roubava-lhe o viço e o cheiro.

Aos poucos, Antônia perdeu o riso, o brilho; mofado como o velho vestido de chita... No campo esquecida, restou-lhe: ignorância, mãos em pele e osso, ornadas por unhas maltratadas e encardidas, retratando suas emendas costuradas na árdua lida.

Nunca ia além da igreja; curvada e encolhida, olhava as damas vestidas de princesa, calçados em couro e luvas de pelica. “Um dia ainda vestiria assim”, ainda restava-lhe sonhos, sobrava-lhe vida.

Herdara a velha máquina da mãe falecida; com ela se mantinha. Com a cabeça nas nuvens e pés no pedal, girava a roda, também os dias... Transformava tecidos, atendia às senhoras da vila; uma sempre lhe dizia: “-Toninha, você precisa de companhia! - Se arrume menina, ainda é bonita!”. E era, possuía certa graça: magra, cabelos lisos e negros, olhos amendoados, comuns à origem indígena, assim como a pele amarelada; lábios carnudos e bem desenhados. Porém, Antônia não ouvia apenas elogios, muitas vezes escutava: “Coitada, não fosse a costura, morreria de fome. Não estudou, não sabe escrever o próprio nome!” ou “Nunca vai casar, quem vai querer alguém tão insossa?” Fazia-se de surda, precisava de freguesia.

Voltava para casa, o vento frio castigava- lhe a tez, aproveitando o descaso das roupas surradas. Não esperava que a velha máquina a deixasse na mão; ainda mais agora, havia algumas costuras a serem entregues.

Após deixar marcada uma visita do técnico, seguia cabisbaixa até a charrete; seu único meio de locomoção até a cidade. O velho burro que a puxava, estava cansado, ela bem sabia - a qualquer momento também o perderia.

- Boa tarde moça! A senhorita está a minha procura?

Virou-se devagar, o sangue subiu-lhe às faces tornando-as quentes e rubras, deixando nua a timidez. Abriu levemente a boca n’uma tentativa inútil de responder; nada saiu.

- Acaso foi a senhorita que deixou marcada a visita? Minha irmã disse que esteve lá agorinha!

- É o senhor? - O moço que concerta máquina? Conseguiu murmurar.

- Sou eu mesmo senhorita - Acabei de chegar – Como disse, minha irmã falou que a senhorita tem pressa do serviço. - Podemos ir juntos?

Enquanto esperava resposta, ele a apreciava. Difícil acreditar ainda haver alguém com tamanha timidez. Ela parecia-lhe tão frágil... Sentia frio, era visível - os pelos eriçados naqueles finos braços assim o demonstravam.

- Posso ir com a senhorita, ou ainda não vai para casa?

- Vou sim moço. - Mas... Como vai voltar? Retrucou depressa, deixando aparente certo receio.

- Desculpe-me senhorita, não soube me expressar! Não vou na charrete, irei na minha bicicleta. Se me permitir, vou acompanha-la, assim não erro o caminho. Disse ele rindo da situação.

- Agora que entendi, podemos ir. Respondeu Antônia já subindo na charrete, direcionando o burro rumo ao caminho de volta para casa.

Chamava-se Pedro, aprendeu o ofício técnico com o pai, concertava máquinas; não somente as de costura, também grande parte de outros artefatos mecânicos. Era como sustentava a mãe e a irmã.

Apanhou a bicicleta e a seguia pensativo. Suas ferramentas, iam devidamente acondicionadas em uma caixa presa na garupa, faziam um leve tilintar pelo caminho de paralelepípedos. Após deixarem o centro do vilarejo, seguiram por uma estradinha empoeirada durante uns quinze minutos. Finalmente pararam em frente a uma porteira antiga caindo aos pedaços.

- A senhorita pode deixar que eu abro. E foi logo descendo da bicicleta deixando- a encostada em um arbusto. Correu apressado a empurrar o que restava da porteira, abrindo caminho para passagem da charrete.

Tudo ali precisava de reparos; observava enquanto apanhava a caixa de ferramentas. Ela desce, vai até a porta, faz sinal para que ele a siga.

- Aqui moço, esta é a máquina. - Não sei o que aconteceu com ela, só sei que não costura mais nada.

- A senhorita pode me chamar de Pedro. – Vou ver o que aconteceu e depois digo o que está errado.

Puxou o banco que ela lhe oferecia e rapidamente põe-se a trabalhar. Antônia o observa: ...Era um belo rapaz, educado e trabalhador... Ouve ao longe aquela vozinha dizendo: “... Precisa de companhia...”

- Moça! Como se chama mesmo? A pergunta a trouxe de volta, quase teve uma parada cardíaca com o susto. Tremeu ao responder cabisbaixa.

- Meu nome é Antônia. – Você já encontrou o defeito?

- Sim, achei. Porém, vou ter que voltar e buscar uma peça para substituir. Essa daqui está gasta.

- Bem, o senhor ainda não disse quanto fica. Não sei se vou ter dinheiro suficiente para pagar o concerto.

- Vou buscar a peça, se não puder pagar tudo agora, paga quando puder.

– Está bem assim?

- Bem... Se for assim, pago parte agora e o resto depois, quando eu entregar as encomendas. Ela respondeu

Enquanto seguia rumo ao vilarejo ele ia pensando. Não devia ser fácil cuidar das coisas sozinha, o lugar precisava de um homem.

- Sossega Pedro! Não é moça pra você! Disse em voz alta.

Pedro era um rapaz comum, a mãe sempre dizia que deveria se casar, haviam várias pretendentes mas ninguém até então o despertara para o amor...

Tudo aconteceu rápido, contrariando até então a vida de Antônia. Eles pareciam feitos um para o outro, e após um namoro relâmpago, veio o casamento. Acabaram vendendo o rancho e indo morar no centro da cidade, facilitava para o trabalho de ambos. O marido a cobria de mimos, sempre a incentivava a se aprimorar, sabia do talento que possuía.

Antônia resolveu estudar, depois do ensino básico, resolveu fazer faculdade de moda. Tornou-se famosa, era boa estilista, costurava os mais belos trajes femininos; várias celebridades vinham até ela em busca de seus lindos vestidos.

As vezes ainda costura na velha máquina, um velho hábito desde aqueles tempos em que costurava sonhos. Sua colcha estava pronta, às vezes, lembrava-se daqueles dias, quando ouvia: “Coitada, não fosse a costura, morreria de fome. Não estudou, não sabe escrever o próprio nome!” ou “Nunca vai casar, quem vai querer alguém tão insossa?”

Ema Machado

EMARILAINE
Enviado por EMARILAINE em 10/02/2018
Código do texto: T6250570
Classificação de conteúdo: seguro