O fantasma na caixa de vidro
Fantasmas não atravessam vidro. Como eu sei? É que estou morto, ou seja: sou um fantasma. Se você quer prender um fantasma, basta fazê-lo entrar numa caixa de vidro. Mas atenção: o vidro deve ser inteiriço, sem qualquer juntura com nenhum outro material que não seja vidro e apenas vidro. Senão o fantasma escapa pelo vão entre as lâminas, por mínimo que seja esse vão. Assim, de início deve-se atrair o fantasma para uma caixa de vidro aberta para logo em seguida soldar a tampa da caixa antes que ele tenha tempo de sair de lá. Como se faz isso eu não sei. Não sei porque não estava olhando. A verdade é que sou um fantasma preso dentro de uma caixa de vidro. Não se vê muitos como eu por aí. Quer dizer, não se vê mesmo. Poucos fantasmas são tão idiotas a ponto de se permitirem ser presos em caixas inteiriças de vidro sem nem ao menos perceberem como a tampa da caixa onde estão presos foi soldada. Eu estava distraído dentro da caixa, confesso. É que tinha, tem, um espelho no fundo da caixa, e nada distrai mais um fantasma do que um espelho. É como um jogo de encontrar erros. Quando um fantasma está diante de um espelho, o erro que ele fica tentando encontrar é ele mesmo. Porque o espelho reflete tudo que possui substância, e como o fantasma não tem substância mas está lá, parado diante do espelho, ele pode levar décadas pensando no problema de por que ele não é refletido pela superfície do espelho. E foi nessa absorção, nesse lapso de reflexão sem reflexo que soldaram a tampa da caixa sem que eu percebesse. E agora estou preso aqui, onde possivelmente ficarei até o fim da eternidade. Isso se ninguém quebrar o vidro por curiosidade ou por pura falta de jeito. Sempre tem um desastrado que quebra alguma coisa, por mais que ela seja indestrutível. É com isso que estou contando, já faz quase uma dúzia de séculos. Pois o vidro é tão eterno quanto os fantasmas. Todos os deuses são feitos de vidro, e é por isso que Nietzsche sempre filosofava com um martelo na mão.