Nada

Ele encarava fixamente as linhas azuis do papel de caderno, mas os seus pensamentos estavam em outro lugar. Mais especificamente na última lembrança que tinha dela. Um último olhar exausto, de uma série de tantos outros, pouco antes dela desaparecer porta afora de sua vida.

Ele deixou o caderno de lado e ergueu o copo vazio para o garçom, que pareceu entender o recado.

- Não tem nada pior do que uma página em branco. Nada mais assustador. -Ele disse, ao garçom quando este lhe trouxe mais uma cerveja.

Garçons não são bons psicólogos, ele sabia. E havia limites para o que ele podia encontrar em um bar. Não existiam muitas respostas ali. Encheu o copo e o secou logo em seguida. O papel continuava em branco. Pessoas entraram e saíram, e ele concluiu que era bobagem continuar naquele lugar. Pegou a caneta e escreveu quatro letras no papel. Uma palavra que resumia tudo.

N a d a.

Ele não tinha nada para escrever. Porque não sentia nada.

Estava vazio como o seu copo.

E permaneceria assim.

- O senhor vai querer algo da cozinha? – Perguntou o garçom.

Ele apenas balançou a cabeça negativamente. O homem se afastou e ele ficou sozinho encarando o seu nada e o seu bar quase vazio. Cambaleou até o banheiro, esvaziou-se de tudo o que havia bebido... Depois foi até o balcão e pagou a conta. Se dispôs ainda a dar um sorriso para uma moça que achou bonita, que estava na porta do bar, que ela ignorou ou sequer percebeu.

Parou um táxi e entrou pela porta de trás.

- Para onde vamos? – perguntou o taxista.

- Para casa. – Respondeu

- Ok. Mas o senhor precisa me dizer o endereço.

- Ah. Sim. Certo... Segue para a Várzea que eu indico a rua.

O taxista se pôs no caminho em silêncio.

As ruas também estavam vazias e silenciosas...

Baixou o vidro e sentiu o cheiro de terra e asfalto molhado pela leve chuva da madrugada. As luzes amareladas da cidade lhe traziam lembranças de todas as vezes que tinha feito esse trajeto. Sozinho ou acompanhado... e lhe davam uma sensação de que havia perdido tudo. A sensação de derrota completa não lhe era estranha. Na verdade, era quase familiar. Mas ele não estava derrotado, realmente... Ele não teria perdido tudo enquanto ainda tivesse as palavras consigo. Sabia que ainda as tinha, mesmo que não conseguisse pô-las para fora...

O taxista chegou à avenida principal do seu bairro e ele indicou um ponto. O carro parou, ele pagou e desceu. Pegou as chaves de casa, abriu o portão e entrou. Sentou-se no meio da sala e contemplou o papel amassado que trouxera do bar.... Lá estava a única palavra que escrevera

“NADA.”

Pegou a caneta do bolso, fechou os olhos e lançou-a contra o papel.

"Você nada,

nos meus pensamentos,

e as vezes pula para fora da minha cabeça

como um peixe de aquário.

E você se materializa nas coisas que eu faço

como pedaços de lembranças

e nas coisas doces e amargas que eu provo

Queria que você aparecesse do nada

E salvasse meu dia

minha vida

ou que me afogasse de uma vez

Mas nada, nada, nada... você só nada e eu não sou nada

nesse mar que escorre dos meus olhos

Antes, eu mergulhava em suas pernas e desaparecia dentro de você,

dentro do seu gozo.

e hoje só restam as manchas, na minha memória

só restam os restos

Que pra quem já teve o que eu tive

são quase nada.

nada."

Sequer se deu ao trabalho de avaliar o que tinha escrito.

Deitou-se no chão e entregou-se ao sono pensando naquele último olhar e em tudo o que ele significava.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 05/02/2018
Reeditado em 01/10/2020
Código do texto: T6245607
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