O Procrastinador

A biblioteca está vazia, deixada às moscas. Na verdade, sequer moscas há aqui. Mesmo os ratos já se foram há muito em busca de melhor pasto em um esgoto qualquer. Sobraram apenas as fiéis traças. E com estas inseparáveis amigas, eu partilho a minha solidão.

Agora, olhando este espaço do passado com os olhos do presente, constato com uma leve melancolia que não poderia ter sido diferente, em hipótese alguma. Sou o que fiz de mim e não saberia fazer outra coisa.

Vejo as velhas estantes, com os volumes empoeirados. Velhas folhas de papel branco espalhadas, algumas delas preenchidas por uma caligrafia trêmula e insegura. Romances, poemas, ensaios: todos abortados. Nunca terminei nada. Sou um grande procrastinador.

Li certa vez que o príncipe dos aforistas modernos, o alemão Georg Christoph Lichtenberg que também nunca terminou nada e por isto sua obra consiste basicamente de aforismos e breves anotações de idéias de projetos que nunca veriam a luz --, queria escrever um livro autobiográfico que se intitularia "Der Procrastinateur". E que foi devidamente procrastinado como tudo o aquele grande homem, corcunda e hipocondríaco, fez.

Alcanço sobre a escrivaninha um volume com uma seleção de seus aforismos e leio:

"um livro é como um espelho: se um macaco se aproxima dele, não pode ver refletido um apóstolo".

Lichtenberg, sempre preciso. Capaz de condensar reflexões de uma vida em apenas uma única e poderosa frase. O livro como espelho. Um espelho que ao mesmo tempo nos transforma. Transformados, olhamos novamente no espelho: nova transfiguração. E assim continua a cada releitura. Por isso o essencial é reler. Reler o mesmo livro por toda a vida. Até que ele nos torne aquilo que sempre fomos, mas ignorávamos.

Eu gostaria de continuar este conto que começara com uma biblioteca vazia, versando sobre a velhice e a solidão, e que, no meio do caminho de sua efêmera vida, transmutou-se numa crônica sobre a procrastinação: minha, de Lichtenberg. Mas não. Poupo o leitor de tamanha chatice e, tomando como ensejo a força de começar e a preguiça de terminar tão caras a Lichtenberg, procrastino a minha literatura para um futuro que nunca chegará.